sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

das cadeiras...

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"quando a mentira se justifica?
quando, em vez de ferir, alivia?
cada existência forma sua própria verdade
mas sempre em correspondência 
com a verdade do outro
e cada mentira pode ser sua própria verdade
caso a proteja
a suprema veracidade do outro
que é a sua vida"
Carlos Fuentes - A Cadeira da Águia
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quero que você entenda
quero que saiba
quero que se questione 
até que ponto a separação 
pode mais que a presença?
porque a ausência 
nos inflama de paixão 
até que enlouqueçamos?
e, pelo contrário,
até que ponto
as conveniências sociais nos obrigam
a abandonar a luz do amor 
e perder-nos na noite 
na insônia e no vício?
e. finalmente, 
porque o ponto de equilíbrio 
destes extremos da paixão
- a fome da presença, o vício do abandono -
acaba encontrando 
uma maligna conformação 
no esquecimento?
ou pior
na indiferença?
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de qualquer forma
alguma coisa em mim
talvez minha nostalgia do impossível
me impulsionou desde jovem ao risco
mas  também a agudeza mental
à ambição a ser mais do que eu era
como se meu sangue 
clamasse por uma herança
escondida
inevitável
sonhada como algo estranhamente luminoso
apenas  um vislumbre
acontece
eu me formei na miséria de muitas perdas
morando em vários lugares sem distinção
na disciplina sequestrada à necessidade de sobreviver
na íntima convicção 
de que um dia não apenas seria alguém
mas de que já era algo:
um poeta
um menino despojado de sua linguagem
algo
filho de letras dispostas ao acaso
filho do acaso
(cada acaso é um caso)
filho de algo
fidalgo

Textos adaptados do livro de Carlos Fuentes - A Cadeira de Águia
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das despressurizações...

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"poesia despressuriza" 
Nicolas Behr
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cada acaso é um caso
no entanto 
a impressão final
é outra
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aprendendo a xingar 
com precisão cirúrgica
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eu quero pão
tempo

paciência
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trago a beleza trágica
daquilo que não é
para aquilo que é
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estou entre fiapos de ossos 
de fratura de alma exposta
delirando na gravidade zero do desejo
eu me desloco sem chão
na dimensão do sonho
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tauromaquia:
só consigo um rascunho
quando tento 
pegar um touro à unha
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sempre esqueço
nunca trago
só a vontade
é quem me diz
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alguns acreditam que o ódio 
é mais inteligente que o amor
e se acreditam 
é porque eles próprios 
montaram cultos e altares 
sem deuses verdadeiros
esses altares que envelhecem
prematuramente os corações:
a fama e o poder
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eu faço a letra coreográfica
caligráfica
a graça da tecnologia do meu desejo
onde caibam
todas as palavras
ditas numa tela plana
em full HD
feito cinema
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missa

em nome do pai
do filho e do espírito do encanto
que eu não tive quando criança
virei um rapaz mais velho
e paz na terra 
aos rapazes de boa vontade
que o rapaz passe
que o rapaz cisme
sem mim
sem você
sem ninguém
senhores
tende piedade de nós
amém

(mas sobretudo
livrai-me
e nos livrai
da ideia avassaladora
de que não me resta
e não nos resta
outra escolha)*

*Bruno Zeni
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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

dos alados...

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"das tempestades só percebo
o começo e o fim
- os raios justificam os meios"
Julio Carvalho






















pégaso by Noé Klabin


pégaso
a caneta
o lápis
de cor
pégaso
nas palavras e me prendo
minuciosamente
pégaso no peso do papel
timbrado
lacrado
nas asas
nas patas
palavras presas
feito ferraduras
na crina que escreve
(retiros
pela
culatra)
o galope salva
a raiva de última hora
na cauda
o silêncio 
é um coice
que se mete a maltratar 
criando
dentaduras
artificiais
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lavatório

escrever 
sem pensar no enxágue
toda palavra é suja
quando lava
o sentido mancha:
vira nódoa
pardacenta

(talvez poema)
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dos poços...

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"os artistas são como os filósofos, 
têm frequentemente uma saudezinha frágil, 
mas não por causa de suas doenças nem de suas neuroses, 
é porque eles viram na vida algo de grande demais para qualquer um, 
de grande demais para eles, e pôs neles a marca discreta da morte. 
mas esse algo é também a fonte ou o fôlego 
que os fazem viver através das doenças do vivido... - " 
Deleuze





























fosse o fosso

não quero viver o vazio do texto
é por isso que às vezes não escrevo
é ruim quando você perde 
a natureza da palavra
e tudo vira contágio
eu imune
quando as rimas faltam
eu impune
as palavras somem
eu fico fora de mim 
me olho de longe e não me vejo
estou sem desejo
busco motivo e coragem 
para voltar a escrever
ir de encontro comigo 
no vazio do meu texto
eu busco uma imagem
a minha falta em rima
o vazio que falta
com a cicatriz
em cima

Fernando Schubach e Julio Carvalho
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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

dos ordinários...

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"Curioso que algunas personas te planteen problemas propios 
como si esperasen que la solución surgiera de uno y, 
al comprobar que la persona es ajena a ese planteo y,
seguidamente, externa al problema, concluyen: "es que no entendés"..."
Mariano Raffaelli
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e então as preocupações ordinárias 
farão as malas 
e deixarão as emoções livres 
para viver 
em absoluto estado 
de ocupação
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nunca mais te chamo de lindo
porque lindo te assusta
quem sabe se for o feio
que realmente te ajusta?
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como a razão:
mas a razão é excessiva matéria
e a matéria mata
que sobrevivam
espíritos
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dos deslembramentos...

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"deslembro o suor
a nova edição de nós"
Alexandre Mercki
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foto de Rafael Felice Dias


queria
o poder de descomplicar
gente que tem um cadeado de ideias
e que nem com senha 
consigo
abrir
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sou um poeta delivery:
entrego direto na cabeça
e cobro nos olhos da cara
de quem lê
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criando
espantalavras com seus corvoemas
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por pouco
eu não me perco
por muito
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gosto de quem pensa
porque não engole
qualquer coisa
feito isca
falsa
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o pensador
difuso
com o cérebro
sem uso
comete
abusos
mentais
é a falta que
a reflexão
faz
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bagagem emocional:
quem não deve
leva
leve
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follow me:
quem segue
consegue
ir atrás?
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love ghost:
meu fantasma 
é a sua 
máscara
OU
sobrevivo
enquanto seu fantasma
não virar
minha máscara
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disfarce:
o que são 
dois dedos
de prosa
contrários
num espelho?
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sábado, 25 de janeiro de 2014

das paredes...

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"dois eram os fogos distantes
roendo as bordas da noite
quando entre o fogo precoce
e o lento braseiro de sempre
um espirrar de fagulhas
fez o encontro dos vaga-lumes
do céu ao solo onde a esquecida lenha
aguardava a cópula quente do lume
súbito acender que se contrai
da brasa jovem exposta ao vento
e o (junto ao) repentino ressurgir das chamas
ao eventual contato de uns gravetos
fogo novo na lacuna de duas chamas
que distantes com ele (dele) mais se preenchem"

sobre um desejo - Naej Pala































pode chorar:
o choro é a alma
quando fala
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achei que tinha visto alguma coisa 
do outro lado da parede
com olhos de raios X ou algo assim
derrubei tudo 
escavei os tijolos
sangrei os dedos 
chutei o resto dos escombros 
a tempo de ver um poema 
se escondendo lá do outro lado
fracasso, fracasso, fracasso,
esse gosto que ecoa tão mal na palavra
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sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

das seriedades...

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"a Vida envolve o outro. outro:
labirinto procurando a saída no teu labirinto sem saída.
não há trégua além do gozo. 
quando há trégua. quando há gozo."
Isadora Krieger
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eu falo sério
e falar sério não é tão sério quanto parece
eu falo sério com os mentirosos
mas eles ignoram a minha verdade
eu falo sério com os políticos
mas eles não levam o povo a sério
eu falo sério com os medrosos
mas eles nem tem coragem de me ouvir
eu falo sério com os padres
mas eles duvidam da minha fé 
eu falo sério com os orgulhosos 
mas eles só ouvem o próprio umbigo
eu falo sério com muita gente
que me ignora, despreza, reclama
por preconceito, raiva ou intenção
eu falo sério mesmo assim
e insisto
até me ouvirem
sem obrigação
eu só falo brincando com as crianças
elas sim
levam a sério
a minha fala
só por diversão
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poema da hora do almoço

o poeta finge
que aquela estrela
é um cometa
e se atira
na frente dela
o poeta faz o mesmo
com as palavras
se atira na frente delas
achando que são estrelas
(o poeta gosta do risco dos atropelos)
mas não são
mesmo assim o poeta corre o risco de achar um sol
e se atira...
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não dá pra fazer alguém valorizar o que não conhece
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das oralidades...

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"Minds, like bodies, will often fall into a pimpled,
ill-conditioned state from mere excess of confort."
Charles Dickens
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sexo oral

tempo nublado no céu da boca
deu com a lingua portuguesa nos dentes
sem saber
onde a palavra foi digerida
entre a pedra e a pólvora
a faísca
acaba
em línguas de fogo
como quando todas as palavras
incendeiam
espalhadas 
pelo corpo
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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

das regras...

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"é preciso criar regras que gerem descontrole"
Givago Oliveira
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circo de ideias

meus palhaços
nesse circo de alvoroços 
cresceram tortos
na lona e na lama
na corda bamba
quem me acorda
todos os dias 
são os leões
só com seus urros
é que me afasto
do picadeiro

(aprendi a ser um pária
das circunstâncias)
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terça-feira, 21 de janeiro de 2014

dos acordos...

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"ninguém nos molda de novo em terra e barro.
ninguém evoca o nosso pó.
ninguém."
Paul Celan
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acordo perfeito

entre os poetas eu sou famoso de mim mesmo.
meu nome é Julio. 
assim mesmo. sem acento.
entro nos poemas como um toque suave, deslizo entre as palavras 
como uma onda que se espalha sobre a areia.
o poema escolhido, se pudesse falar, me dirigiria somente palavras gentis: 
"Senhor Julio, finalmente, sua visita é uma honra, quanto me fez esperar..."
e, quando chego, o poema se abre, generoso e lírico, solícito como uma mão amiga.
sim, porque de mim os poemas não escondem nada. sei escolher a melhor hora, 
o momento adequado. adoro chegar tarde da noite. prefiro a madrugada. 
é justamente então que a presença das palavras, como o perfume das flores é mais intenso.
no meu ramo, nada pode ser deixado ao acaso, o risco é grande demais. 
trabalhar sozinho é uma temeridade. quando projeto um novo poema, 
conto sempre com um cúmplice confiável, escrupuloso, infalível, 
o único no qual acredito tanto quanto em mim mesmo: minha emoção.
dou a ela livre curso pelos caminhos das palavras e sigo-a até onde ela decidir me levar.
se um poema não a interessa, decerto tampouco interessa a mim: 
o acordo entre nós é perfeito.
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eu tenho uma verdade enorme encravada dentro de mim
e ela não sai de teimosia
esse é o problema das verdades
tem que passar por diversas mentiras
para amadurecer
e escapar
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eu ando
escondido
de incertezas
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minha vida é esse ferimento no pé
que não cicatriza
vermelho intenso
prurido aquoso
que incomoda
sob um band aid
a vida escassa
e marca
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e uma tristeza intensamente minha
trafega na solidão do meu corpo
enquanto o estado das coisas
é violência e alvoroço
nesses cardumes exilados
em enxurradas sólidas
que não percebem
a solidão alheia
carregada de peixe
lama e chuva
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uma vida mineiramente amarga e transparente
de escrita difícil e coração fácil
das coisas ausentes e das coisas presentes
paulatinamente
grandicidade
sampa
calcificado
por aqui
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tenho culpa
se o reencontro comigo
foi adiado?
sou de tantos desejos urgentes
que nem tenho tempo pra mim
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entre todos os espantalhos
espalhados no céu:
nuvens
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não procure na minha boca sua palavra
quando estou conversando com meus naufrágios internos
sob a manga das palavras
nada se perde em dobra alguma
no vinco do lado da boca
a saliva tem a cor do esquecimento
a palavra dada é a fala recém perdida
que enche várias cabeças por semana
sempre brancas com aceno de despedida
durante todo o tempo que bate o sangue nos relógios
os que falam não sabem
e nem se dão conta disso
que cada palavra acontece
entre sempre e nunca
depois da fala 
todo corpo é silencioso
e passa a escutar as distâncias 
lendo por dentro dos olhos a palavra vencida 
a palavra encoberta pela dúvida
da fala
dentro da boca 
escondida
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o barulho
da construção
me desconstrói
o ruído
é um incômodo
lento
consumindo
o corpo
por dentro
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"pensas que me acusas?"
você e suas medusas
não me cobram
mais
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porque o amor não está nem aí para a fechadura
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das mortes: a lógica da laje é que ela é trágica
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domingo, 19 de janeiro de 2014

das mitologias...


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"Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?"

Ferreira Gullar - Em alguma parte alguma. 
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o umbigo de jean

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mintológico

assim funciona o passado:
em cada margem
um mito de 
passagem

de acordo com o futuro
o passado muda
na medida em que ele precise 
de alguma modificação
culpa  da memória 
essa coisa transitória
o passado desobriga
e o futuro não tem compromisso 
com nada que foi feito
o dia de hoje é um método
ontem um meio
amanhã talvez
seja um muro
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todas as palavras 
não são mais 
que uma superfície de cacos de vidro 
na entrada de uma casa 
com a porta aberta
sejam bem-vindos
poetas com seus pés descalços
a poesia entra pelos pés 
dói
e sobe violentamente
à cabeça
e depois sai
a toda velocidade
entra nos viadutos
e se choca contra as paredes
a poesia é um acidente
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o mundo é o mesmo
o resto
idem
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eu te amo
sem ter certeza
do que eu derramo
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amor,
em vírgula
acaba em ponto.
final?
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mesmo que doa
amor se doa
mesmo à toa
amor voa
mesmo que não se queira
amor escapa
nenhuma poesia
de amor
empaca
amor se solta
e não volta
essa poesia, por exemplo
de amor
nunca mais volta
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todo mundo diz
que a vida está lá fora
será que se eu for até lá
ela ainda fica
e não vai embora?
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