quinta-feira, 31 de outubro de 2013

da insensatez...









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"assim começa o dia no corpo: antes do sol"
Julio Carvalho































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não tenho formas de voltar à casa: 
ela me foi arrancada do corpo
antes do tempo


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eu levo a poesia até a insensatez 
a falta de costume 
ao desuso
escrever poesia
consiste em levar ideias
a extremos para que fracassem como aprendizagem
é uma abdução de sentidos
e seus aliados universos absurdos
é renegar a palavra
armando-a
amando-a
ardentemente


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uma cabeça cheia de minhocas:
use-as para pescar ideias


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a coisa toda está tão difícil
que estou aprendendo a amar
em parafuso


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mastigando com os ossos

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é preciso ouvir toda aversão

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infortúnio

arranha os céus da noite
sob a circunferência dos faróis
dos carros
rumores tóxico-
poéticos
e nuvens de aço
cortaram a carne
desordenada
numa placa mal anotada
assassinaram a palavra
mais que o morto
lia-se:
assidente 
fatal

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blefe
sem mais nem menos
tabefe
eu não bato: abato
quem não me acate
eu esquento e vira chá
mate


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quem?
nós poeamamos 
como eu poemei
isoladamente
naquele papel
no chão
e nasceu
a flor
a flor (do poema) é um efêmero
discreto


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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

das respirações...

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"Noto nos poetas brasileiros das safras mais recentes uma contenção talvez ainda mais severa que a do tempo em que a mais importante das bandeiras era empunhada contra a poesia piegas e edulcorada. Sinto em muitos poetas de hoje uma tendência à geometrização, à valorização do visual, uma afinidade com a pintura e a escultura. Parece que vivemos o mesmo momento que precedeu o concretismo. Há um pudor de sentir, de exprimir o sentido. O poema não se escreve, distribui-se na página em blocos exatos, científicos quase. Os poetas novos temem ser acusados de ingenuidade e protegem-se dela com areia, tijolo, cimento e cal. Alguém emocionar-se com algum poema de qualquer um deles é fazê-los passar pela vergonha suprema. João Cabral de Melo Neto contribuiu um bocado para isso. Vista sob a perspectiva da época em que ele construiu sua obra (e construir me parece o verbo adequado), ela tem uma justificativa que agora talvez não se sustente mais tão bem. Dirigida cada vez mais à razão que à sensibilidade, a poesia anda fazendo feio nas livrarias e, se alguém perguntar a um atendente qual seria o poeta moderno mais indicado, a resposta provavelmente será Carlos Drummond de Andrade."
RAUL DREWNICK






























desaguar
a palavra
em rio
até chegar no mar
feito poesia

continuo os passos
que vêm de longe

enquanto isso
a maré avança
alma adentro

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é a sensação constante do fim que deixa a vida com ar oblíquo
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o medo da solidão pode nos tornar acessíveis
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não ter resposta é confirmar-se ausente
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a morte 
pretende
chegar
ao THE END
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eu brinco de ser poeta para aprender a me levar a sério
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a palavra dói em cada curva pois o som é bisturi que rasga o poema 
e faz nascer o choro contínuo a lavar o peito
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tenho raiva dessa poesia maldita em mim agarrada o tempo todo aos meus desejos 
- essa tatuagem
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gestar o poema é difícil; parir mais ainda. alguns poemas querem nascer antes do tempo, prematuros. 
o poeta precisa estar em paz com seu mundo interior para gozar de uma saudável fertilidade
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respirar
é uma atividade
liter (ar) ia
extra
curricul (ar)
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nem cristo, nem cruz, nem deus, nem adeus
só um tchau e olhe lá
nenhum lenço branco
um outro lado de costas
oposto
e só
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bom de serviço:
todo poema 
tem que ter 
fim e início
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amou tá amado
amarrou tá danado
cada um que se cuide
e o outro que entre 
em pane
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tudo cai 
quando se pega:
passarinho
flor
ou doença
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algo mudou em mim: 
um nunca mais
algo mudou DE mim: 
algum nunca mais
alguém nunca mais
- se o fim existe, que ele exista em absoluto
algum jamais

Julio Carvalho & Raffab Viana
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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

das faíscas...


"as pessoas todas possuem em excesso
somente eu aparento estar perdendo
sou como um ignorante que tem o coração puro
os medíocres vivem lúcidos
somente eu aparento estar confuso
os medíocres vivem lúcidos
somente eu ando introspectivo
indefinido como uma infinita noite silenciosa"
Tao Te Ching - Cap. 20
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foto de Fernando Schubach


fátuo

ainda faço e reparo
as arestas da luz 
nas chamas
atiro pedras
para causar faíscas menos breves
e de nada adianta
o fogo não some
só consome
- falta o gás -
combustível difícil esse: 
o amor-petróleo 
enjaulado
em poucas  jazidas
o ouro negro
dos olhos
quer sair por aí
incendiando
qualquer
paixão

(procuro)
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quarta-feira, 16 de outubro de 2013

das ficções...


"O que mais me entristece e revolta é lembrar de certos dias 
em que abri aquele meu sorriso mais bobalhão. 
Eles, os dias, sorriram também, mas de minha ingenuidade. 
Tinham quatro pedras em cada mão e mais algumas guardadas, 
e logo mostrariam que sabiam atirá-las."
Raul Drewnick
























ficção
...no final dessa terça-feira, para se provar real e frutífera,
precisaria reservar ao menos meia hora em que alguém me tocasse nos ombros 
e corresse os dedos pelos  meus cabelos, 
ainda que nesses dedos certamente 
encontrasse sinais recentes dos aromas de outros corpos.

dizer eu dos outros
como um cara em combustão
eu não entendo
eu não incêndio
antes de prestar
atenção
eu apago todas as tochas
com os olhos
acesos

estou com dores de dente
dores de gente
demente
na minha frente

o céu
é difícil alcançar
o chão nem tanto
basta cair
despencar

emérito 
é o seu pretérito
que um dia
foi perfeito
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sábado, 12 de outubro de 2013

das nuvens...


"Deus criou todas as coisas e nos incumbiu do mais difícil: 
a tarefa de nomeá-las, tanto as rosas quanto os borborigmos."

Raul Drewnick







dia de nuvens...

De uns tempos pra cá, todos os dias 
eu olho pela janela inexistente do meu quarto 
e começo a medir uma nuvem com uma régua de vinte centímetros. 
Pretendia descobrir o tamanho real dela. 
Não deve ser tão grande assim.
Isso é necessário porque de vez em quando 
é preciso fazer exames, tirar chapas. 
Examinar até mesmo nuvens. 
Nunca se sabe o que pode acontecer com as nuvens. 
Afinal elas são tão frágeis e se acabam logo. 
Nuvens são feitas de fiapos.
Fiapos são fiapos e alguns dizem que são de algodão outros de vapor. 
Isso vai depender da criança de cada um. 
Existem crianças grandes e crianças pequenas. 
As crianças grandes são mais raras. 
As pequenas são nuvens. 
Também  crescem e se acabam logo. 
Nem sempre em chuva. 
Então é preciso medir nuvens. 
Antes das trovoadas encontrar crianças. 
Procurar crianças que andam sempre nas nuvens. 
Grandes ou pequenas.  
Tudo isso tem que ser feito antes da chuva começar.
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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

das origens dos poemas...











































"você já se perguntou o que acontece com todos os poemas que as pessoas escrevem?
aqueles poemas que elas não deixam ninguém ler?
talvez eles sejam pessoais e particulares demais
talvez só não sejam bons o bastante
talvez a mera sensação de que alguén possa ler uma manifestação tão sincera seja vista como
deselegante
frívola
boba
pretensiosa
melosa
banal
sentimental
trivial
tediosa
excessiva
obscura
inútil
ou
apenas vergonhosa
é o suficiente para dar a qualquer aspirante a poeta boa razão para esconder sua obra dos olhos do público
para sempre
naturalmente muitos poemas são 
destruídos imediatamente
queimados
rasgados
jogados na privada
vez por outra eles são dobrados em quadradinhos e enfiados sob o canto de um móvel bambo
(e assim se tornam muito úteis)
outros ficam escondidos atrás de um tijolo solto
ou
lacrados no verso de um antigo despertador
ou
colocado entre as páginas de um livro obscuro que tem poucas chances de vir a ser aberto
algum dia alguém pode encontrá-los
mas provavelmente não
a verdade é que a poesia não lida quase sempre não passará disto
condenada a juntar-se a um rio vasto e invisível de refugo que aflui dos lugares distantes
bom
quase sempre
em raras ocasiões alguns escritos particularmente insistentes vão fugir para um quintal ou uma viela soprados pelo vento ao longo de um aterro na beira da estrada e descansar enfim num estacionamento de shopping center
assim como tantas outras coisas 
é aqui que algo extraordinário tem lugar:
dois ou mais escritos poéticos vagam até se encontrar devido a uma estranha força de atração que a ciência desconhece e vagarosamente grudam até formar uma bolinha disforme
se deixada em paz
essa bola gradualmente fica maior e mais redonda pois versos livres
segredos
confissões
reflexões
desejos
e cartas de amor não enviadas
também se prendem uma a uma
esta bola arrasta-se pelas ruas como folhas ao vento por meses até anos
se ela sair apenas à noite
tem boas chances de sobreviver ao tráfego e às crianças
e com seu lento rolamento evita os caracóis (seu predador número um)
com certo tamanho 
ela se protege por instinto do mau tempo
despercebida
caso contrário
vaga pelas ruas
buscando
restos perdidos de pensamento e sentimento
com mais tempo e sorte a bola de poesia se torna
grande
imensa
enorme
um vasto acúmulo de pedaços de papel que acaba subindo ao ar
levitando apenas com a força de tanta emoção não dita
e flutua suavemente sobre os telhados dos lugares distantes quando todos estão dormindo
inspirando cães solitários a latir no meio da noite
infelizmente
uma grande bola de papel não importa o quão grande e flutuante
ainda é algo frágil
mais cedo ou mais tarde ela será surpreendida por uma rajada de vento
castigada por chuva forte e reduzida em questão de minutos a um bilhão de tiras molhadas
uma manhã todos acordarão para ver uma polposa sujeira cobrindo os jardins
entupindo sarjetas e encobrindo para-brisas
o trânsito ficará prejudicado
as crianças encantadas
os adultos perplexos incapazes de conceber de onde veio tudo aquilo
ainda mais estranho será descobrir que cada massa de papel molhado contém diversas palavras desbotadas prensadas em versos acidentais quase invisíveis mas inegavelmente presentes
e para cada leitor vão cochichar uma coisa diferente
coisas alegres
coisas tristes
verdadeiras
absurdas
hilárias
profundas
e perfeitas
ninguém será capaz de explicar a estranha sensação de leveza nem o sorriso escondido que perdura mesmo depois que os varredores de rua vêm e vão."

Shaun Tan - Contos de Lugares Distantes

dos disparates...

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"acendemos paixões no rastilho do próprio coração. 
o que amamos é sempre chuva, entre o voo da nuvem e a prisão do charco. 
afinal, somos caçadores que a si mesmo se azagaiam. 
no arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara."
Mia Couto





































quem aqui não sentiu
esta nossa
fina melancolia?
não a do tédio
desesperado e doentio
nem a nostálgica
nem a sonhadora
esta nossa 
fina melancolia
que vem não sei de onde
um pouco talvez das horas solitárias
passando através da janela
ou de uma música
ou do barulho do mar
(quando existe mar)
entoando rumores
com os ecos do mundo
quem aqui nunca sentiu
essa fina melancolia?
a que suspende
de repente
um sorriso
começado
e trava inesperadamente
a nossa alegria
que traz sempre à nossa conversa
qualquer palavra triste sem motivo?
melancolia que quase nem existe
porque é num instante apenas
tão rápida aparece
quanto some...
...................
o amor é uma lembrança de aquarela
se não pinta
dá n'água
.....................
tudo acontece
quando eu não estou por perto

eu me fodo todo
só pra rimar
e não rima
......................
porque no meu corpo as mãos ficam tão longe uma da outra que eu busco outras
........................
me canso rápido: eu sempre fico como quem parte.
...........................
pai
era aquela chave
que batia
quando chegava
na escada de metal
que batia

até hoje
existe a dor
das escadas
.............................
eu minava refresco pelos olhos
a pimenta é dos outros
...............................
capela
é sagrado
mas o santo
eu não faço
............................
eu sou a mão que escreve
e consome
o poema
........................................
urgência
- mando amanhã
- não quero mais
..................................
(não é desconfiança - é falta de certeza)
................................
eu gosto de dizer não
pela timidez
de fazer
melhor
meus sins são os casos mais perfeitos de amor
se eu digo sim eu faço
eu caso...
................................
medida nenhuma

só tem eu
serve?
só assim me acontece agradecer
na foto
quase sem nenhum sorriso
ou dentes
com a carne não se brinca
ainda mais com as carnes mais sensíveis
não se engane
antes de me alcançar
é preciso
transitar
............................................

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

das carências...


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"Penso que cultivo tensões
como flores
num bosque onde
ninguém vai.

Cada ferida - perfeita -
fecha-se numa minúscula
imperceptível pétala,
causando dor.

Dor é uma flor como aquela,
como esta,
como aquela,
como esta.
"
Robert Creeley
(Da coletânea A um, tradução de Régis Bonvicino, 
publicação da Ateliê Editorial.)



























ópera glasses - Julio Carvalho


carência: no escuro, vejo o brilho maligno dos seus dois olhos. têm fome e esperam junto ao cio a inadiável sede de um animal. nunca falha, a espera. serei eu, hoje, que os olhos devorarão. não tenho sede. engulo seco. o que não suporto mais é a solidão de minha carne.

Adaptado de Raul Drewnick
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