sexta-feira, 19 de setembro de 2014

dos d-eus-es...

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"assim como nos campos a abelha
persegue a flor, a cabra o talo novo,
o javali a raiz e os outros animais,
a semente e o fruto, 
do mesmo modo,
nas leituras de poesia,
um seleciona as flores da história,
outro colhe a beleza e a construção das palavras."
Plutarco
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Intervenção sobre capa feita por Mira Schendel












































essas coisas antigas
sob a pele sem espessura
submersas 
em memórias ruins
incomodam
então
petrificou seu passado
e o esculpiu
até que ele se tornasse
um poema
assim transformado
aliviou a dor 
que o devorava
só ficaram os nomes
os nomes
dos deuses
que restaram para os poetas
............................................................................................

resumo do dia

eles que são bancos que se estendam
para nosso espanto
nas praças públicas
num ato obsceno
ereto
concreto
e armado
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dos amantes...

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"metade do que sou é o excesso
do que não me cabe"
Lou Albergaria
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kiss kiss (releitura de Kasia Kifert)




























um pensamento ao gosto
de um amante impossível

a invocação dos astros
longas explosões amorosas
estrelas cadentes em amplos desertos
com suas linguagens sem tradução
e essas mãos ao deslizar na conversação
podem mudar as coisas
os humores
a distância que separa dois corpos
é inadmissível
um momento que se desenvolve
na paixão pelas observações
as mãos devem ser cuidadosas
com a velocidade
os corpos devem ser cuidadosos
com a distância
é preciso um silêncio distraído
ligando as peles
enquanto lá fora
entre as estrelas e os desertos
de línguas estranhas
não há luar
e os corpos só guardam
o que querem guardar
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dos cadáveres...

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"se não dá
o vivo
o definitivo
desintegra
apaga"
Julio Carvalho
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Ilustração de Eduardo Berliner




















da estação dos gostos
das delícias do ver
e as pesadas
amargas ausências
a hortelã-pimenta
arde
a derrota da fome
da falta
do que se come
esteve em tempo
de ultrapassar
os sabores da língua
tudo se engole
num aperto
num medo
num susto
tudo se consome
enquanto
se desabotoa
o pensamento
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vivo
enquanto eu 
poema-humano
brigo 
para não ser 
transformado
em
objeto-pessoa
por isso
exijo
rimas
comigo
.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

das poetisas...

,
"num olhos
áridos
pequena pupila
pula
pede
esquece
pinga
suga
canta
e cintila
pupila
não finda
oásis
infinita
a fenda
que me abre
linda!"

Pupila - Michelle Della Torre
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a sua roupa quis pendurar*
nas cordas do meu varal
rapaz
não é este o seu quintal
atravessando com a fúria
com a desculpa de consertar
meu destino e minha linha
já tive de sofrer
para lavar a alma
esperar a luz do dia
antever o sol
se deitar e levantar
então não me pergunte
você não sabe 
dessas tempestades
tenho muito menos do que eu tinha
e levo muito menos ainda
essas roupas molhadas
de chuvas e de lágrimas
decidi 
por isso
e resisto:
as minhas roupas agora 
secam
sozinhas
....................................................................................

epitáfio*

o oposto do senso comum -
as palavras costumam eternizar as pessoas
penso exatamente o contrário
qualquer que sejam as palavras
me fechariam em alguma ideia
e acabariam me matando
verbal, literal e totalmente
....................................................................................

a palavra escrita (parada)*
foi salva com letra tabulada
após título, fonte e cor..
arquivada!
e na tipografia oca das letras
eu me sepultava
a palavra 
e eu
estamos brigadas
a criação
produz
divórcios
a separação
é de bens 
escritos
à ferro
fogo
tinta
e revolução
só existe retorno
com o movimento
(da palavra)
inspiração
....................................................................................

o rubor me vem ao rosto e deságua nas minhas mãos*
um torpor no corpo estreita
me habitar e agir
um modo de se tornar mais criativo 
consumindo críticas em longos goles
aí sim
vem à tona
as mais deliciosas críticas 
e os mais cruéis deboches
tão breves e frágeis gotas
intolerantes à embriaguez
e penso
atingindo com a língua
um resquício de whisky 
no canto dos lábios
que nem todos os amigos
são para merecerem me ver bêbado
e nem todos os amigos são
para merecerem me ver sóbrio
separe os amigos como as garrafas 
umas cheias outras vazias
a tristeza mora nas vazias
e perceberá com a sã clareza 
que nem sempre é necessária 
alguma explicação 
porque todos os vícios 
TODOS!
são apenas um

*Poemas de Michelle Della Torre 
revistos por Julio Carvalho
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das cegueiras...

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"a vida levada a sério fica cega"
Julio Carvalho
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não quero nem saber dos gestos
e das flechas que fecham os olhos
e de gente carregando
na mão tanto silêncio
que até os bichos e as águas
desviam
seus cursos
para não despencar na solidão dessas pessoas
e o próprio sol
vira o rosto envergonhado
esse seria
"um dia em que se possa não saber"
onde as horas só observam
o tempo que se lhes passa
ou resta
seja esse o tempo de flalso gozo
seja o tempo da desgraça
dos gestos em flechas
com as horas azuis, paradas
no peito do próprio tempo atingido
no limiar do que passa e
nem sabe onde atinge
a flecha lenta ou rápida
.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

dos noturnos...

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"Quando somos muito fortes -, 
quem recua? muito alegres -,
quem cai de ridículo?
Quando somos muito maus,
que fariam de nós?
Enfeitai-vos, dançai, ride.
- Não poderei jamais atirar o Amor pela janela."


Rimbaud
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um poema branco cor de alma seminua agoniza neste instante num lugar remoto da memória derradeira do seu dono perdeu-se na lembrança de sua vida e com ele morre o mundo da palavra esquecida sua míngua cantos ritos e espíritos de um éden extinto e nunca saberemos seu nome nem começo meio ou fim mas em um momento disperso seus versos serão descobertos e sua leitura classificada como legítima espécime de uma poesia que talvez acabasse existindo como verbete de enciclopédia.

das monotonias...

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"sobre a arte de não se adaptar
e de se sentir confortável com isso"

Jéssica Ferraz

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o homem sem conteúdo
é a coisa mais inquietante
de tudo
o seu duplo
produz a dilaceração
do nada
um lugar vazio
a privação de um rosto
a estrutura original
de um anjo
melancólico

o resto é só e monotonamente a verdade
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das possessões...

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"Jan Saudek disse: "eu te amo"
para muitas mulheres
e ao ser perguntado
se essa grande frequência na expressão 
deste amor poderia levar a uma banalidade do ato
ele diz que o que importa é a verdade do momento"

Jan Saudek em entrevista
.











































largo
lúgubre
raízes
entortas
vermelhas
possessões
de flores e frutos
dos mais proibidos
aos mais devoráveis
deixe o ser
fixo nas paixões
o sangue
nas veias
pulsando
possibilidades

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terça-feira, 16 de setembro de 2014

das explicações...

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"ambição: ser tão amplo
quanto o azul, que é do mar
mas cabe
numa gota."

Curto e Azul - Matheus Jacob Barreto

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vou criar o "Manual Prático das Explicações Desnecessárias"
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que eu parta
que tu partas
que ele parta
parte e ame
as pessoas que a todo momento partem
as quem partem
as que amem
aspartame
e não reclame
se o que parte faz a arte
de ir embora
sem tomar parte
ou se o amor não for tão doce
diga que ame
com aspartame


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regresso a casa
doce paranóia que repito
depois que saio da estação
em cada trem que regressa do sonho do dia
em pleno gozo do clima
toco o tambor do verão
e prego nas paredes
com lanças
minha coleção humana de pássaros
supura a lua doente
e já é noite rápido
a cidade cresce e consome a si mesma
em nada desconhecida por mim
babel de cupins ou estátua de pó
mas feliz a qualquer forma de volta para casa
longe do pânico de qualquer amante
longe do delírio da fuligem que faz às vezes de neve
atestado em meu arco de fogo
protegido
sereníssimo
na densidade
dos dias
.

dos ponteiros...


"quando todos que você ama te abandonam, 
ser o Diabo não é tão ruim assim."


foto de Wanderson Alves






















seguiria
os passos
do tempo e da luz
se fossem
verdade
(mas são relatividades)
é como 
estar entre ponteiros de fogo
então
ausente dos dias
tomo
do cálice
das horas

dos estágios...



o Sermão do Inanimado:
"As plantas, as rochas, o fogo, a água, tudo é vivo. 
Eles nos observam e percebem nossas necessidades. 
Eles percebem quando não temos nada para nos proteger... 
e é então que eles se revelam e falam conosco."
Um velho Apache conta esta história a Joseph Campbell 
em "O Herói de Mil Faces"


foto de Wanderson Alves



























o estágio
dos olhos entre
cadeiras
galhos e a margem
da rua
entes
não existem
e ainda assim
as sombras
dizem
.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

dos exageros...

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"quando algo em nós muda,
mas ainda não estamos prontos para isso,
tudo parece um absurdo."
Wabi
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o não lugar do sofrimento

é duro ser poeta
e ver coisas
que a sensibilidade
exageradamente
permite
precisaria
ter olhos de razão
mas o vício
de sentir
causa desencontros

ha! esses desconfortos
emocionais...
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eu sei que se lesse*
com qualquer dos olhos
aquele início de poema
onde uma palavra arde
intensamente
me queimaria nele
e ficaria manchado para sempre
de delírio
da cabeça aos pés

*Inspirado por Ferreira Gullar: "Pintura"

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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

dos intrusos...

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"aqui não é preciso nada
guardo o lugar
com palavras"
Julio Carvalho
.


























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mineração

o poeta sonha com línguas
fluindo sem fronteiras
como paisagens na janela
de um comboio de trens
o poeta sonha com idiomas fluindo
sem fronteiras
como paisagens 
na janela de um trem
um trem que transporta 
minérios
gerais
o poeta era das gerais de minas
sem línguas de rios
porque em minas não tem mar
o poeta tem a sensação 
de que a lingua passa pela janela do trem
sem mar
apenas pelo rio
apenas pelo trem
o poeta sonha 
com uma lingua fluente
como um rio
como um trem
que atravesse fronteiras
línguas-rios dentro de um trem 
sem mar
o poeta quer a paisagem 
pela janela com rio
com mar e poesia
e o comboio
como a vida
um trem
de ferro
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não tenho paciência
para o vácuo
tanto das coisas
quanto das pessoas
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não gosto de curtir o decorrer de uma ilusão
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olhar amarelo

deixo minhas coisas como elas estão
dentro de uma combinação de circunstâncias
procurando evitar possíveis crises
mas
essas conjunções
disjunções
não são tão simples
a imagem do cais 
desaparecendo
lentamente
até sumir na outra margem
as nuvens se dissolvem
na ansiedade
nas veias 
nas mãos de espantalho
tremendo
essa coisa crônica
que não sei onde mora
querendo virar
desespero
e revolta
o mundo todo parece
querer dar adeus
ao sossego
- estamos aqui 
pediremos ajuda
para não
desmembrar
um barco não pode ficar
à deriva
por tanto tempo
senão
forma e coisas 
se desconectam
ou desaparecem
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paixão & amor 
fazem pequenas combinações com 
ansiedade & angústia
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a
par
a
doxos
tudo 
o que poderia
aliviar sua memória
atrás de uma porta
que não existe
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intruso entre intrusos 
introduzo
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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

das lunações...

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“A luz sucumbe; 
o mundo sorve a escuridão invernosa
E por todo o lado
Vastas cidades abandonam-se aos seus fantasmas...
O poeta, à escuta de outras vidas
Como a sua, recomeça: 

"E é tudo delírio...”

HAMILTON, Ian. "Poet" / "Poeta". 
In. Cinquenta poemas. 
Trad. Nuno Vida. Lisboa: Cotovia, 1995.

.




























lunática

em roxo
um
raio
de lua
desceu
corrói
a fresta
através
da porta
na sua própria
instância
insistente
um velho
cravo
despejado
vazado
ao alvorecer
no apelo
negro
da noite
depois
de escalas
de todas
as cores
do espectro
da manhã
cala na
noite
o sono
na cama
o seu fluxo
desfeito
alinhavo
no avesso
do dia
um desenho
projetado
roxo
em movimento
em forma
de cálice
pólen luminoso
que ainda funde
na noite
o roxo
único
de suas
escalas
de seus escapes
sobe
o raio
rumo
à lua
nesse instante
penetra
junto
seu raio
ínico
no mais íntimo
traço
oco
grão
foco
embaçado
na areia do deserto
que envolve
dois oásis
um refluxo
de luz
eclipsa
a rua
o gato
o galo que finge
o dia
sucumbe a lua
à cor
mais alegre
entre os prédios
o raio
a cor
insistente
a lua estoura
tudo o que
interrompe
o roxo obsessivo
o olhar
alcança
a parede
cálice em estilhaços
selva de cacos
ausentes
só a redondeza
reunida
em um ponto
de luz
na noite
fustigando
um esconderijo
espontâneo
então
a cor desaparece
quando
forja o dia
talvez um feixe
de luar
roxo
de vergonha
.................................................................................................................................

lua cheia
me altero
sanguíneo:
volto a lua
escondida
desde a infância
entre as nuvens
.

domingo, 7 de setembro de 2014

dos desmedidos...

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"eis por que, diante do reflexo da beleza 
que às vezes se representa em solo firme, a alma, 
que é como um cavalo alado, agita-se e quer alçar voo novamente. 
o amoroso é assim arrancado da miséria do tempo que passa."
Aude Lancelin & Marie Lemonnier
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A7MA











































"a saga de um poema

numa realidade
nasce o poeta
soprado pelos quatro ventos
foi encontrado pelo poeta
(velho atravessador
como a ponta das coisas
Stalker, Gaspar, Baltazar e Melquior
sem vícios e ocupações
mantém a tradição de seguir estrelas
cadentes e poemas ascendentes 
só para ver onde vai dar
ou o que vai encontrar lá 
- por acaso como faziam os outros - 
suas únicas preocupações são os cometas
com a cauda na frente e a pré realidade)
num deserto o poeta fez seu primeiro movimento
- gesto declara isso na palavra -
é a imagem de voltar para casa em som de criança
uma saída
um estado de espírito - do zero
como aquela lenda
que contam que os poetas vieram substituir
os profetas"
Bruno Pastore - Adaptado
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ouvi numa galeria
"arte é uma forma de proteção"
se a arte é uma forma de proteção
poesia é arma
(a minha sempre engatilhada)
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como fruto
jabuticaba
como ser cada um 
já embuti
cada
um
cuspindo
caroços
destroços
me desfiz
de
cada
um
.................................................................................

era luta romântica
era luz
era treva
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intro



amor e razão não se dão bem
vivem em quartos separados
Cupido com seu aspecto
infantil, também é hostil
- um par de asas dissimulando
um arco assassino
o amor seria
um terreno baldio
sem herdeiros
amar também é apontar
sem flechas para um alvo que é
um autêntico mistério
por isso toda prudência ao encontrar o amor 
com o mesmo cuidado 
de quem entra na jaula 
de uma fera prestes a devorá-lo vivo
morre-se pela sua falta ou pelo seu excesso
estranhamente
a ausência de sua perturbação 
causa um vazio de discursos
uma apatia
certa desbeleza no olhar
que os seres amados
afortunadamente 
e misteriosamente
possuem
tamanha desconfiança
afasta muitos
deixando esse assunto
como distração
para os amantes
ou inspiração
para os poetas
talvez
seja prudente
a proteção a todo custo
dessa energia
dificilmente 
controlável
mas o amor
resiste
a toda
racionalidade:
por isso são tão
incompreensíveis
as declarações
de amor
.