terça-feira, 29 de abril de 2014

dos organismos...

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"que se passa poeta
adiaste o futuro?"
Ferreira Gullar
.










































é no silêncio
que os poetas 
multiplicam suas
palavras
..............................................................

a moda
do outono 
é a decadência 
do verão
..............................................................

azul exílio

muito cedo 
alguma loucura
se instalou 
em minhas janelas
desde então 
penso necessário 
o delírio
..............................................................

devoro-me
ao
fundo
.

dos arraigados...

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"para nós,
           a rima
              é um barril.
                          barril de dinamite.
 o verso, um estopim.
              a linha se incendeia
                           e quando chega ao fim
        explode
                        e a cidade em estrofe
voa em mil."
Vladimir Maiakovski
.



























vocês

tudo isso 
sobre o que você
fala
não diz nada
sobre o que eu 
falo
de você
....................................................................

hábitos arraigados

leio onde existe letra
ex
letra
cadente
de um céu
poético
e eu brinco a
deus
poesia
feita
de quedas
livres
cada linha
uma 

con(f/t)usão

enquanto
quando não escrevo 
estou lendo
o lado certo
das palavras
mas afinal
o que são palavras?
puro encerramento
significativo
de sinais
a mim foi dado
o espaço de invertê-las
tê-las como filhas
como parir 
inverter
comparar
existir
do mesmo modo que escrevo
eu sou existo sempre como 
pária
palavra que se perde
pertencente
à gravidade
cai
como 
pelo - pelo
menos uma vez ao dia
se rebela
revela
um outro lado
um outro poema
escorrega
prega na parede
o visgo
escorre
numa curva quente
morrendo
ao avesso
ao mundo
ao muro
da palavra
solta
abraçada
à raiz
do chão
....................................................................

existo onde há fogo
e a faísca
cintila
....................................................................

hoje de novo nego a venda
para a vida, o varejo, a renda
e sigo fazendo uso de poesia
contra a maré da mercadoria
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quinta-feira, 24 de abril de 2014

dos negativos...

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"com minha fome de lobo
acalmo
meu corpo de cordeiro"
Atrito -  Giuseppe Ungaretti
.










































cada pessoa se estende
e se acomoda
nas outras pessoas
as mais solitárias
são as que mais
contemplam
................................................................

pela manhã
o sol rapta a cidade
com nuvens de refém
são dias de chuva
que te pegam
de assalto
................................................................

da minha poesia
sempre me sobra
um inesgotável
segredo
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eu sou um homem
uniforme
com uma alma quase deserta
um espelho impossível
eu desperto
eu vou me unir
e vou possuir
este raro bem que me nasce
poesia
bem guardado me nasce
ON
e quando passa
bem naturalmente
se apaga
OFF
................................................................

quando encontro
no meu silêncio
uma palavra
imediatamente
ela se torna poesia
................................................................

o interminável
tempo
me usa
como espantalho
................................................................

no meio de tudo
um

















................................................................

somos irrepetíveis:
cada qual um molde perdido
cada qual um calo específico
doendo no meio da vida
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sempre tristíssimas
as coisas imensas
o olho não alcança
e força enxergar
sem nenhum resultado
a frustração é onde
o olhar não chega
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o depois do porre
é pobre
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dos desleixos...

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"Não há instante 
que não esteja carregado 
como uma arma."
Tigres, espelhos, labirintos - Jorge Luis Borges
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em chuva a me lamber o gosto
até que alcance o oposto
dessa ausência que me devolve
..........................................................................................

no meu inverso a palavra cabe
no meu inverso a palavra sabe
no meu inverso a palavra abre
no meu inverso a palavra leve
é o que mais quero que desabe
..........................................................................................

racionado

qualquer palavra
é melhor que a palavra ferida
que fica do lado de fora
exposta
a palavra interna é qualquer palavra
sagrada que desmancha
(acaba separada em pedaços
e dividida entre os órgãos internos:
amargo-bile estomácido
suor-pele em sonoro saldo pulmonar
lágrimolhos chorando pensamentos)
e as bocas falando falando
feito doidas
esses muitos poemas
falados por dentro
e só um órgão escreve
cabeça por cabeça
meu
cérebropoema
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vida que eu sei
é briga de foice fazendo força
em linha reta
como um cabo de guerra
e quem ganha não se amarra em  nada
e o outro que cai na lama
aprende que uma queda
custa os olhos da cara
é essa briga que acontece
intensa
entre os corpos que se buscam
quando deveria ser lugar de afeto
entre as pontas dos dedos
e as palmas das mãos
esse lugar certo
..........................................................................................

eu tenho desleixos
em coleção
eu entupo vazios
preencho palavras
com desvario de causa
eu tento
até o que não posso
possuo o que me
escorrega
eu tenho a mão
cheia de faltas
as falhas
me consomem
em tudo
eu tenho um corpo
encolho
os olhos
durmo difícil
escondo as olheiras
disponho o tempo
em sonhos
acordo assustado
quando a vida
aparece.
de repente
acordo
..........................................................................................

tenho dó de gente em comprimido
de gente em dose única
não engulo.
cuspo.

não sou mais a dose homeopática de antes
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terça-feira, 22 de abril de 2014

dos arremedos...

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"Calandria, jamás cantas tu canto definitivo 
porque cantas el canto de otros pájaros: 
no lo sabes y crees que inventas siempre 
tus propias melodías que otros pájaros remedan".
"Imitaciones" - Silvina Ocampo
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foto de Roberto Laplagne




























meu talento é verde
minha poesia é pálida
minha arte imatura
- permaneço novo
para  não envelhecer
de soneto
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coração pouco profundo
desesperança
leve
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atualmente
tudo é novo
tudo é fresco
tudo é recente
nada é moderno
................................................................

reunir; colecionar; aglomerar; 
atestar; juntar; conhecer; 
agrupar; atrair; reciclar

há um tempo para se reunir
há um tempo para colecionar
há um tempo para se aglomerar
há um tempo para atestar
há um tempo para se juntar
há um tempo para se conhecer
há um tempo para se agrupar
há um tempo para se atrair
há um tempo para se reciclar
................................................................

quando eu tinha 17 era um tonto
quando eu tinha 37 era um idiota
aos 57 estarei falando sem sentido
(...e não falta muito)
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começo de manhã
pronto de tarde
chego de noite
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se a arte nem sempre é bela
então porquê falar de belas artes?
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observem o budismo:
primeiro é budismo
depois  não é budismo
então uma vez mais é budismo
................................................................

qual a sua reação 
à minha ereção?
(desculpe-me se interrompo
os seus pensamentos)
................................................................

a palavra destino
significa tanto
quanto escrever 
desenhar 
pintar
e então 
viver?
................................................................

devo permanecer correto
para voltar
perfeito?
................................................................

porquê o amor 
é sempre 
um sentimento romântico?
porque não pode ser 
clássico
simbólico
impressionista
dadaísta
surrealista
etc?
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gente comum
e gente chata
e meu incômodo
espælhado
................................................................

doa a quem doar 
mais do que 
doa a quem doer
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quarta-feira, 16 de abril de 2014

das importâncias...

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"quem deseja mas não age
tem tendência a sonhar.
quem age mas não sonha
está perdido."
Miranda (2002)
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com o que você acha que 
um grande poeta se importa?
você acha que ele pensa o dia todo 
em vinhos finos e caros?
eventos de gala?
ou o que vai dizer no discurso
de lançamento do seu próximo 
ou único livro?
não
ele vive para aquele momento
vicioso de alegria criativa
um momento que pode aparecer
uma vez a cada década
ou nunca
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sobe
sobe 
tudo
sobretudo
sobre o caos
sobre o cais
sobre os mares
e as marés
que não me contém
mais
...................................................................................

um acorde suspenso no ar
deixa espaços de tristezas
uma melancolia diante do espelho
indicando o lugar
que o (onde o) silêncio cobriu
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segunda-feira, 14 de abril de 2014

das frestas...

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"só o desejo não passa
e só deseja o que passa
e passo meu tempo inteiro
enfrentando um só problema:
ao menos no meu poema
agarrar o passageiro."
Desejo - Antonio Cicero
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eldorado

encontrar
um caco de vidro 
no vão do espelho
o grão do tempo
um corte na linha de qualquer vida
na mão um reflexo
de nada à margem
dos erros
dos rios
das praias 
e de seus inúmeros mares
aos pares 
os lugares distintos
distantes
o menor diamante
encontrado
é ainda possível
que se faça
um único corte
.

sábado, 12 de abril de 2014

das mitologias...


"antigamente eu era muito nervoso
agora estou num novo caminho:
coloco uma maçã em cima da mesa
depois me coloco dentro da maçã
que tranquilidade!
isso parece simples
entretanto
havia vinte anos que tentava
e não teria conseguido
querendo começar por ali
por que não? 
talvez me sentisse humilhado 
em virtude de seu tamanho diminuto 
e de sua vida opaca e lenta
é provável 
os pensamentos da camada superior raramente são belos
retorno à maçã
lá, novamente, houve tateios, experiências
é uma longa história
partir é pouco cômodo
assim como falar sobre isso
mas, em uma palavra, posso dizer-lhes
sofrer é a palavra
quando cheguei à maçã
estava congelado"
adaptado de Magia - Henri Michaux
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aqui começa a chuva
e uns silêncios
onde os deuses vêm me visitar
e eu os recebo
numa enxurrada
quase como à beira mar
..................................................................................

e acabamos por pisar novamente 
o terreno das histórias 
e das mitologias
onde todas as tarefas são impossíveis 
e as perguntas insolúveis
ai nasce o mito
ou alguma mentira...
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das intimidades...

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que pergunta é essa que eu carrego?






poetry without words

cai o silêncio sobre a língua
nesses dias de abandono
o caos
não se faz em um só dia
os deuses precisaram de sete
alguns só de um 
um dia de pensamentos em paz
precisava de ninhos nas árvores
precisava caminhar tranquilo 
pelas ruas de qualquer cidade
quero um tempo 
em que tudo será pleno 
em que homens de pedra 
sobre a chuva ácida
vão esperar
a vida
de leve
..................................................................................

jornal íntimo

nessas folhas impressas
que engulo
todos os dias
a tinta gasta 
eternamente 
retocada
um nanquim que
nunca termina
nessa escritura
então eu 
feito de tinta
à duras penas marcadas
de cor
armadas
de dor e algum poema
a minha palavra
é uma pele
sempre pede
feito sede
mais
.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

das trocas...

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"não nos peças a palavra que esquadre por todo o lado
a alma nossa informe e com letras de fogo
a declare e resplandeça como um croco
perdido no meio de um poeirento prado."
Eugenio Montale
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trocar a pele
trocar de roupa
é expor o nu
desesconder a vergonha
atirada num chão de vidro
onde tudo muito transparente
incomoda
só o tempo faz a transformação
faz o não acostumar-se
e o modificar
é preciso
arrancar a pele
que já não aguenta mais
tantas
cicatrizes
o novo é algo que se constrói
algumas vezes
na transparência da dor
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aturdido
(adoro essa palavra)
...................................................................

em resumo
toda a minha vida de poeta
tem sido uma luta constante
contra a reação
e morte das palavras
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uma manhã andando
num ar de vidro
felicidade alcançada
caminhando
em fio de lâmina:
de braços dados
chamei-lhe
vida
...................................................................

de passagem:
ferro a vapor
ironias a seco
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quinta-feira, 10 de abril de 2014

das invenções...







"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, 
que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, 
que nos levam sempre aos mesmos lugares. 
É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, 
teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."
Fernando Teixeira de Andrade
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ilustração de Gabriel Picolo


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a invenção do nome:

julio significa cheio de juventude
talvez por isso eu sinta 
que nunca envelheci
o espelho me engana 
dizendo que tenho
mais idade
e por dentro
um nome que como eu
tem significado incerto
possivelmente
com origem no latim Julius
derivado do grego ioulos
que quer dizer 
“barba rala ou felpuda ou macia”
que se refere aos pelos faciais 
de homens mais jovens 
e pode também ser atribuído 
o significado de 
“jovem ou jovial”
talvez seja por isso que o novo me atraia
e as novidades me agucem 
a curiosidade me falta
inicialmente era nome 
de uma família patrícia romana
derivado do nome Iulo
filho de Eneias e Creusa
assim como eu 
de José e Lúcia
e teve como ente mais conhecido 
o imperador Caio Júlio César
mas acabei Carvalho
como árvore e tronco e tudo muito jovem
atentando até hoje a poesia e a ânsia 
de outras novidades
ainda existem outros estudiosos 
que dão um significado alternativo para Julio 
relacionado com o deus romano Júpiter
o de “filho de Júpiter”
o maior dos planetas
a maior das vontades
um maior desejo de expandir 
para todos os lados
porque Júpiter é um planeta
feito de gases
composto de hidrogênio e hélio
e faz parte dos planetas jovianos
junto com Saturno, Urano e Netuno
(jovem, etéreo e volátil)
e césar significa “o que tem o cabelo comprido” 
ou “cabeludo” ou “cortado” ou “talhado”
não tem um significado consensual
(tudo no meu nome é incerto
como um ímpeto ou ânsia 
ou desejo ou vontade)
outra possibilidade é tenha surgido 
da expressão em latim 
“a caeso matris utero”
em português traduzido como 
“o corte do útero da mãe” 
onde caeso significa 
“cortado, talhado”
(um jovem barbado 
com os desejos cortados pela raiz)
daí vem a palavra “cesariana”
nome da cirurgia em que se retira 
o feto de dentro do útero 
através de um corte
diz à lenda que o nome surgiu 
com o imperador romano Júlio César
que teria nascido através de uma cesariana
e eu prematuro e insaciável e ansioso
apareci de seis meses
e fiquei numa estufa improvisada
segundo o que me consta na memória
e me soa quase como lenda
da minha própria história
e depois do governo de Júlio César
o nome passou a designar um título
usado por todos os imperadores que o sucederam
que dava a ideia de 
“governante” ou “rei”ou mesmo “ditador” 
e até hoje o nome é associado a esse significado
então foi que entendi
onde todos os meus deuses ascenderam:
sou um jovem barbado 
e ditador de mim mesmo
o que me salva
é que acabei Carvalho
segurado em solo firme
pelo tronco e raiz
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