domingo, 31 de julho de 2016

dos pares...

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"a minha poesia sou eu
... não, Poesia:
não te escondas nas grutas de meu ser, 
não fujas à Vida.
quebra as grades invisíveis da minha prisão, 
abre de par em par as portas do meu ser
— sai...
sai para a luta (a vida é luta)
os homens lá fora chamam por ti, 
e tu, Poesia és também um Homem. 
ama as Poesias de todo o Mundo,
— ama os Homens
solta teus poemas para todas as raças,
para todas as coisas.
confunde-te comigo...
vai, Poesia:
toma os meus braços para abraçares o Mundo,
dá-me os teus braços para que abrace a Vida. 
a minha Poesia sou eu."

- Amílcar Cabral, em "revista Seara Nova". 1946.
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Foto de Natalia Barros in #movimenta2











































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dieta
no meio da noite
leite quente
sanduíche 
frio
e uma 
fome
de
tudo
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be drummond

"no meio do caminho tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
tinha uma pedra no meio do caminho 
tinha uma pedra"

estranhos aos meus olhos
ser apenas uma pedra 
no meio do caminho

no caminho doloroso das coisas
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onde sou a folha do mundo
escrevo um poema
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todo grafite é um poema I

outra vez a lenda das ruas
o ar débil perturbava 
os segredos
os desafios
os medos
os sentidos
nasce primeiro 
a forma suprema 
da inocência 
segundo 
veio a felicidade de contar
a vontade de algum desejo
todas as luzes iluminavam a 
sombra dos músculos 
as mãos querem salvar o amor
em ruínas
breve sede masculina
os beijos em lábios de transição
desenham um grafite
em uma rua silenciosa
o exercício da eternidade
atropela as paredes
nos caminhos 
interrompidos


















todo grafite é um poema II

que silêncio requintado 
desenhado à mão livre
em absoluta linha de tinta 
teria convergido
para a noite ? 
ou estaria tornando-se
impróprio 
para a absorção visual
do dia? 
de entre
as linhas de tinta 
ressentia-se 
a matéria
infinita
enorme instante iluminado
o homem
terminou o desenho 
na segunda noite
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para Nanete

os meus versos são línguas no ar
cantam os poemas que dormem 
com a brisa da rua
falam tão bem das espadas que dissecam a noite
e tão felizmente versificados
os meus versos são línguas do ar
estendem-se no meio da cidade
vigiam os acontecimentos
os meus versos são esses tapetes 
de flores de outono
pintadas com a luz da manhã 
são
janelas do campo que crescem
em meus olhos
e na minha língua ansiosa são o lugar
onde agarro as palavras
nesses dias de cansaço do ar
vem sugar os dias do homem
atirando um incêndio ao ar
os meus versos são línguas do ar
sobre esses tapetes
levados
pelo
vento
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estão os meus edifícios
chegando
sempre 
durante a noite 
são cidades com pessoas
semeiam flores junto ao cimento 
efêmero
e são cidades
com pessoas sempre vindo
tudo se despede da chama
aproximam-se 
os meus
edifícios
da árvore do aço 
e os homens calçam sapatos
e as cadeiras dos bares
se afastam
e os meus edifícios de ferro
trazem mais edifícios
e mais pessoas
eu vi um sonho em meus edifícios

não vi pessoas
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somos verbos por solidificar
posso reanimar palavras 
extintas
mas não os corpos
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não seria útil 
olhar de novo para o sol?
correr o perigo de ferir os olhos
a mão que tateia ao relevo do tempo
canta com as luzes que dançam
da música as sílabas fazem
imenso poema não anunciado
na noite de ontem no centro
com medo
das pessoas entre dois carros
estava um verde incêndio
em pleno farol
anunciando a grande avenida
onde as pessoas procuravam
saber se não seria útil
manter o olhar para a luz
estática 
era a festa 
que se transformava
em pressa
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a infância do antigo
é a promessa do poema
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alto mar
o sentido do regresso 
é a alma do barco
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entretanto
quando diz meu nome
a palavra
do meu banal apelido
ao meu ouvido
o sussurrante som de cada sílaba
na pauta dos seus lábios
ultrapassa uma sinfonia
um universo imenso 
de milhares eus
entretanto
a minha língua inativa
limitava-se
a brilhar entre 
suas palavras

o beijo
já vinha
pronto
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eu lobo
não quero
nem flor nascida 
no mato do desespero
nem rio correndo 
para o mar do desespero
nem comida temperada 
no fogo vivo do desespero
nem mesmo poesia forjada 
na dor rubra do desespero
nem nada!
só a vontade de um uivo
agudo
na lua cheia da minha terra
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"se é para me dar
dou-me de graça por conta disso
mas se é para me vender
vendo-me 
mas vendo-me muito caro"

 José Craveirinha
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em mim
a solidão
tem até nome
já uma pessoa
onde
existe um eu
prático 
um outro eu
dramático 
e um meu outro eu
que chora tudo
pelos três
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ainda a noite
o fogo
queimando
no meio da praça 
parece um
pedaço de guerra
a lua
o suor amadurecendo os ruas
as pessoas
se aquecendo
se esquecendo 
no isolamento
da face
um 
colar aquoso
se desfia

o fogo apaga
quando 
eu
voltar
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voltz
sei
aqui
que depois 
descobri
que a pele transpira
até uma lâmpada acende
e que no inverno
dos mortos
os meus dentes batem de frio
obviamente então
a metamorfose dos mundos
tem de
acontecer
a clareza dos vivos
é não perceberem
a velocidade
quando uma lâmpada 
se
apaga
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como eram bons 
aqueles raros dias
de colheita de amor
o tédio recomeçou 
e começa a tomar conta
de várias lembranças 
e eu
como um semeador
separo pensamentos 
como antigamentes
se separava
o feijão na peneira
a falta 
as vontades
as verdades secretas
e as absolutas
separar
cuidadosamente
na memória 
o que me incomoda 
na realidade 
é uma forma
de fazer as dores
ficarem longe
dos
bons
pensamentos
protegendo
o corpo
como se
fosse
uma interna
luta
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é noite
sobre a cidade
e uma saudade cresce 
no nome das coisas
e de hora em hora
de minuto a minuto 
cresce
cresce devagarinho 
a semente na rua escura 
e a vida 
na próxima esquina
curva-se
mais à surpresa
de algum
possível 
encontro
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a intensa carícia que me falta
vem de alguém 
como o longínquo 
hábito das estrelas
que nos seus luminares
já não existem
mas continuam puras 
enquanto
espero
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lágrima por
um só olho
esquerdo
ou apenas
a intolerável
dor
de um 
ardente fio de névoa
descendo pelo meu 
rosto?
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"Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los."

Wislawa Szymborska
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cheiro de café 
de quando jovem
cafezais
montanhas e montanhas
de terra vermelha
do barro molhado
de antigamente 
há o sabor amargo
sem açúcar 
como foi
minha infância 
era pouco doce
mas haviam cheiros
o limoeiro do quintal 
as redes e o muro alto
o barranco com um balanço 
que eu me perdia de vista
no horizonte
atrás do muro
que era atravessado
pelas alturas
misturo-me 
com o ar e as terras antigas
e o vermelho-chão 
do café que pisei
secando ao sol
e de memórias antigas
e boas
pouquíssimas 
bem poucas
da dureza das faltas
que até hoje
doem no peito
e desse pouco estar
em alguns lugares felizes
esfumaçados 
pelo cinza da torrefação 
e pelo cheiro
de café 
que invadia o meu
quarto
pelas
manhãs 
o meu corpo se recorda
ainda atravessado
e um pouco
triste

mas
hoje o café é preto
e doce
nunca mais amargo
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nos dias de nada
fico deitado
em nada
e o nada comparece
do nada
de repente
do nada uma palavra
que se aperta
entre as têmporas 
e insiste
o nada existe
para ser preenchido
eu me irrito
arranco o nada
dentre os olhos 
- vem aqui palavra
deixa de ser solta no nada!
mesmo com pouco
o nada extraído 
com todas as forças 
das têmporas 
entre os olhos
eu uso
retribuo
e misturo
repentindo
até o nada
ser alguma coisa
um ser vivo
com pernas
para ter significado 
porque o nada
amarrado
incomoda
então para o incômodo 
do nada
cirurgia
com
poesia
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no fundo 
eu sinto qualquer coisa que fere 
que tortura e machuca
coisa estranha 
- talvez seja ilusão
coisa estranha 
que tenho não sei onde
que faz sangrar meu corpo
que faz sangrar também
outros corpos
sem 
querer
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eu sou um pouco de tudo
um tanto de nada
algum além 
e busco incessantemente 
algum encontro
mas os fios das nuvens
que passam 
palavrões exilados
leve-os para longe
não quero esses seres 
leve-os para longe 
muito mais longe
quero ir num abraço 
para onde
não sei
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"não me atirem palavras sórdidas
palavras velhas
inventarei as minhas
e serei um pedaço de palavra"

João Maimona
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suicídio 
é para
apressados
e
desconhecidos
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"O maior inimigo 
da criatividade 
é o bom senso..."

Pablo Picasso
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dizem
"vai pela sombra"
porque nunca dizem
"vai pelo sol"?
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poema de corte
e costura
sem palavras
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em sonhos
todos somos 
saturados
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dias de sol
dias de nuvens
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meu caos
é seu caso
de tudo
há casos
e acasos
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quarta-feira, 27 de julho de 2016

dos obscuros...

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"como pedra do céu na terra, um dia,
um verso condenado caiu, 
sem pai, sem lar
inexorável – a invenção da poesia
não pode ser mudada, 
e ninguém a irá julgar"

Óssip Mandelstam
.
by @mirnagarcia
































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o poema se impõe supremo
entre as linhas
no lugar das horas
o poema se impõe supremo
entre o olhos
entre as folhas
entre os dias
o poema se impõe supremo
entre as raízes
o poema se verte
no azul das flores
em frutos

para Vini Miranda

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Davi Kinski 






















quadrilátero
poético
em
movimento
abrupto
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sou o filho do meio
o antes natimorto
por isso
não me meto
em
política
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um corpo me é dado
– e com que fim
com defeito
meu olhar não olha
direito
meu corpo único
tão de mim
tão por dentro
minha ansiedade
de respirar
silenciada
por medicamentos
sou enfermeiro
e cuidador
cativo
na prisão do mundo
não vivo
sozinho
já nos idos da eternidade
que não acredito
ser tão sincera
sai meu calor
meu sopro respirado
agora
nela se grava meu poema
agora
irreconhecível
de tão recente
agora
ocorre num momento
de lágrima turva
um poema armado
que não resiste
à chuva
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a ira

minha ira
minha fera
quem ousa
olhando nos meus olhos
com a dor
colar e coluna de vértebras
raras
com tantos cortes
e sangue
cinco décadas
que jorram na garganta
das coisas
treme o corpo
espinha ereta
surto à beira de horas novas
tudo tem que ser
enquanto a vida avança
e nessa cabeça
em cadeias ocultas
de ideias
em torno
arrebenta uma onda
uma qualquer pessoa
incômoda
e a vida se parte
cartilagem frágil
ecoam as iras
a idade da Terra naquele
instante
é falha
junto às partes
tortuosas dos dias
soa o fluxo do sangue
e o mundo está aberto
termina uma onda
e vem outra
a ira em corpo aberto
angústia
a onda de novo oscila
batida pelo vento das décadas
e a víbora por dentro
respira
e perde a sua
medida
depois volta atrás
riso absurdo
e descobre o alívio
do surto
exposto
no meio dos rastros
do próprio sangue
pisado
e no meio dos restos
as pegadas
dos seus próprios
passos
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insônia
homens
velas rijas
naves
contei a longa fila
até a metade
barcos em bando
nos sonhos
revoadas de aves
que se elevaram
acima
do sono
sobre a fronte
cai a espera do dia
para onde vou?
mover o corpo
de olho amanhecido
alguém vai saber?
o sol
fagulha
ao
amanhecer
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olhos desmesurados
no
infinito
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contravenção

ao perder as âncoras
derivo e
na

vi
da
se
as
co
rr
en
te
s
me
levam
ou me prendem
ao
fundo

com  Pínkálŝkỳ Gúílhérmé.
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"reparem: todo homem-imóvel 
mantém inalterável o seu sorriso particular"

Mario Bellatin
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meu poema não tem óculos
é invisível a olho nu
nuas são as palavras
despidas de luz
são obrigadas a se orientar
a cada passo-a-passo
até o poema
acabar
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andar olhando
para baixo
rodear o chão
um cão inseguro
onde se vê no ondear
o som de palavras
errantes
dar-me sombra
o bastante
para que sobre palavra
entre um
meio-dia
meia-noite
meia-vida
meio olhar
o quanto eu precisar dividir
o quanto eu puder
enxergar
o poema
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patas
de lobo
ou de homem
doem
se não
acústicas
ou macias
ao olhar
lírico
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olho redondo entre as palavras
pálpebras para cima
forçando o olhar
íris aquática
sem modos insiste
sob o céu
construir
um poema
inclinada
íris fumegante
limalha
até a palavra arde
no sentido da luz
cruza até a alma
não é estranho
todos sob o mesmo céu
e o meu poema cego?
o poema acontece assim
aos poucos na luz
em pequenos
silêncios
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toque de recolher
espinhos
quase palavras
algumas vezes doem
em mãos delicadas
pela destreza
não pela inexperiência
mãos hábeis
que tem delicadeza
e sabem
qualquer dor
antes de
merecer
então pode deter-se
enquanto
tudo
lhe escapa
fosse até na minha morte
sempre assim
eu
renasceria
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trago para o corpo
uma marca que nunca
engana
escrita-espalhada
plana
um coração
contra o corpo
lentamente
rola para fora
escala
escala
pelo dia pelo outro pela noite
por precisar de estrelas
perguntando
por alguém
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em mim
tudo o que escrevo
com um olho
aprofunda-se
no outro
os anos
as palavras desde então
tem sido mínimas
menores que antes
mas o espaço é infinito
esse que toma forma
dentro de mim
então
não preciso olhar
para fora
o ilhar-em-mim
me
acorda
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poema de demora
mudo os aromas de lugar
o mal me quer
intacto
que passe longe
entre lar e abismo
de memória
casa abandonada
em ruínas
esse estranho abandono
se alguém ficasse
teria o mundo
quase
sobrevivido
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evocação

ninguém nos molda de novo
com terra e barro de onde
viemos
ninguém evoca o nosso pó
ninguém
conhece onde
florescemos
e as dúzias de flores
dos túmulos futuros
sempre queremos florescer
rumo à algum
encontro
um nada quando estamos sós
rosa de nada
flor de ninguém
com estame de céu
procurando
no silêncio da chuva
uma palavra púrpura
que alcançamos
num poema
sem
espinhos
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arrancar a própria
verdade
que estre pessoas
surge
em meio
à um turbilhão
de memórias
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"que tempos são estes
em que uma conversa
é quase um crime
por incluir
o já explícito? "

Paul Celan
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‪#‎dialogos‬

virou pó e nuvem
seja um quase
um entreposto
porque algum dia
vou querer
conhecer
seu
rosto
meu rosto não tem mistério
ou segredo
mas sou sombrio
des afio
des vario
de pessoa
para pessoa
quando
tudo
está
complicado
e quando estará
tudo bem?
quando tudo melhorar
tudo é coisa demais
perto de tudo já me satisfaz
quando deixar de ser longe?
quando o perto for suficiente
moro com gente
mas moro sozinho
abismos aumentaram
e se tornaram intransponíveis
os elos se romperam
deixando frascos
vazios
eu tenho líquidos e litros
de poesia
para encherem frascos
vazios
com vertentes
e cola
quente
vidro rachado cortante
eu colo
mudo seu jeito
sem te julgar
sem colocar
defeito
quero ver seus desenhos
e te levar rabiscos
então tem que ser rápido
quero queimá-los
então vamos nos ver ontem?
é o mais rápido que consigo
ontem ainda machuca um tanto
não quero voltar
então vamos nos ver hoje?
hoje sempre dói menos
porque ainda não aconteceu
vamos em breve
não ando conseguindo me comprometer
um quase
um entreposto
perdido
sou distraído
por isso as asas
e você perdido
voe
comigo

com Pínkálŝkỳ Gúílhérmé.

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eu me recomendo
mais como
argumento
do que como
pessoa
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"não se iluda
a paixão jamais obtém o perdão
tampouco o perdoo eu
que só vivo de paixão"


A Chiaromonte - Pier Paolo Pasolini

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seja um quase
um entreposto
porque algum dia
vou querer
conhecer
seu
rosto
entender
seu gosto
para me
multiplicar
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eu sou a síntese
do concreto
armado
mesmo quando
desamado
pois
amado
sou de areia
no
chão
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eu preciso da música
e da poesia
para não ficar a sós
com meus pensamentos
eles podem me matar
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deslocamentos



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"assistindo a chuva cair
o café esfumaçar
a alma diminuir
a vida passar"

 Eduardo Baulhouth
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em um primeiro instante
alguma confusão surgiu
a corrida começa a tempo
antes do pensamento da pessoa
se recompor
alguns com
sons de sentença de morte
eu prefiro no alto
me dependurar
para assistir
tão alto lá em cima
um ar perdido
e cansado
ouço uivos de lobos
no sentido horário
me cobre
e descasca
as limalhas do tempo
em um pacote pronto para servir
agora eu volto
para a realidade
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"eu quis te contar da eternidade 
no exato momento em que aconteceu. 
mas preferi não arriscar. 
aprendi que até uma palavra, 
por mais delicada que seja, 
é capaz de rasgar o finíssimo véu do inesquecível 
enquanto o encanto se faz. 
o sutil é sempre compartilhado em silêncio.

(Mas como nem só de sutileza é feito o homem)"

Memória da Bananeira / Isadora Krieger
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o vento na cidade
não se vê na cidade
nenhuma pessoa com nome
nenhuma identidade revelada
nenhum nome aparente
gente com nome ausente
atrás de corpos identificados
é anônima a cidade
os lugares
como as ruas
seus carros com placas
e endereços
anotados
as pessoas não
são papel em branco
de peles distintas
é como uma grande avenida
sem marcas ou indicações
a mulher que anda
na calçada
não sabe de nada
do músico tocando flauta
no metrô
de madrugada
contudo há na cidade
oculta fisionomia
como no curso de toda vida
uma possível melodia
ou quando vista de cima
a paisagem se organiza
há finos desenhos expressos
por trás de tanto cinza
o vento na cidade
pouco notado sob o sol
seu tecido de fumaça
faz-se invisível lençol
quando se encontra
uma árvore viva
uma alma qualquer
bem-vinda
como uma luz que se acende
algum rosto que refresca
então não lembra a cidade
as suas ruas vazias
não se olha a fumaça
nenhum barulho
se ouvia
são muito próximas
as simetrias
desses rostos
e dessa cidade
gente boa
gente ruim
mas nenhuma
identidade
veem-se as mesmas correntes
que se fazem e se desfazem
pessoas que se desfazem
e outras que com mais coragem
permanecem por muito tempo
como estrelas na paisagem
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amigos
são coisas ternas
entre o terno
e o eterno
eles
são
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desorganizar os roteiros agradáveis
da mesmice e especular as estrelas
do abecedário do vão
entre as
palavras
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hemianopsia heterônima occipital

não luto contra meu coração
luto contra meu cérebro
meio obscuro
pelo
olhar
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Foto de Julio Carvalho



















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