quarta-feira, 20 de julho de 2016

dos maiores...

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"velho, não.
entardecido, talvez.
antigo, sim.
me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
e eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome "

A Adiada Enchente

- Mia Couto, em "Idades cidades divindades". 
Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
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little ghost










































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para vivenciar
nada
basta embrulhar
a chuva 
esperar a noite
e sentir frio
nas pernas
encolher insetos
espalhados no quintal
observar nuvens 
e notar só que são brancas
olhar os outros
e desviar
os olhos
.......................................................

sou
apenas um tradutor de silêncios
pois eu não vivo por extenso
apenas sou a vida
um relâmpago 
intenso
um som alto depois de um
tempo
sou um galho sustentando
o sexo dos homens
e alguns erros
de relações 
complicadas 
as intensidades
não me permitem
ser tão pouco
por isso
a loucura
de toda falta
me consome
.......................................................

a mim me faltam 
as noções das coisas do mundo
do tal jeito que elas são.
tenho uma espécie de lucidez
de que todos falam
mas a minha 
é a lucidez do absurdo
dessa eu tenho
no meio de toda 
e qualquer
paixão 
acredito que um dia 
vou ter um surto 
de paixões 
tão intensas
e represadas
que vou 
enlouquecer 
de
vez
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não me enquadro
não me enquando
a poesia seria maior
e essa é sua beleza
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um grafite
no céu
da cidade
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queria que ficasse
aqui 
aquele olhar
a caminho da curva
da próxima rua
foi assim que aprendi a cidade
pedra
aço 
e lascas de cristal
foi aqui que aprendi 
a amar
desordenadamente
tenho um tempo breve 
para amar
todos os dias
à mesma hora 
e observar corpos à distância
nessa manhã toda azul de frio
sensação urbana de tendões
poros
e carne
e sono
os olhos vendo os avessos
diluídos em chamas
salgadas
pouquíssimas lágrimas

de manhã é 
a labareda do meu corpo
invisível 
nu
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tenho na retina 
que mal vejo
corpos
imperdoavelmente disponíveis
diluídos 
na poeira das multidões
até que um dia
alguém me escute
sem que eu veja
e perceba
alguma diferença 
no modo de sentir 
- não de olhar
.......................................................

estranho bastante
todo inferno
é uma disciplina 
como qualquer outra
dias de gosto amargo 
e rosas
intensas
pagos a peso de medicamentos
na cidade aberta 
a incômoda 
luz
mas inevitavelmente 
a cidade faz-se todos os dias
envelhece 
ruas tornam-se antigas
acontece o mesmo com os prédios
e outros 
aparecem
novos
espelhos 
libertos
atravessando
a linha
difícil 
do horizonte
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gosto das novidades
de adolescentes indecisos
gosto deles assim lentos
inaptos
vorazes
sedentos
de curiosidade
anjos com asas imensas
senhores do caos
é para longe que partem
sempre
para as matas
o primeiro dos elixires
que dizem mágicos 
bebido
de boca em boca
alerta-os
sem perceberem
que
acabam voltando
às palavras 
e aos gestos de antigamente
cumpra-se o jogo
e ninguém suspeita de nada
a experiência 
ditará 
seu
destino
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agora 
que aquele mundo acabou
definitivamente
uma cidade sem volta
resta apenas o eco
de pouquíssimas 
vozes
sou o homem que resta
e erra
de cidade
em cidade
conhece a verdade das paredes
o brilho espelhado dos edifícios 
imensos
o imenso equívoco 
onde me perco
nas ruas
e sei
sempre saberei
que a velha casa
como era
já não estará mais
lá 
nem a casa nem a memória 
nem eu quero que estejam
porque tudo foram dores
varridas por um sopro
e um olhar vacilante
assustado 
entre ruínas 
onde se travava
uma batalha
constante
contra
a solidão
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cansado e lento como um rio
o corpo imóvel 
sobre a cama 
o rosto tenso
o peito ardente
e a perna arqueada
sentindo dores
na coluna
arquitetada
até sacudir 
qualquer lágrima 
e vazar
no mar
tenho na retina
corpos
imperdoavelmente disponíveis
mas distantes
soltos a serem descobertos
na poeira das multidões
até um dia
que um desses corpos
me descobrir
como objeto
de prodigiosa 
felicidade
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"são, como deuses, animais sem cio?
ou são, como animais, humanos que se aceitam?"
Jorge de Sena
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agora que o sorriso 
envidraçado das janelas
me envolve 
e os dias
enrolaram-se
nos meus pés 
sou aquele a quem 
milhares de faltas doem
como dói uma noite de ausência 
vozes e silêncios 
enumerados
na
escuridão
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a noite toda o frio
dissolvendo-se na manhã 
em um céu claro
edifícios
elevadores a prumo
levando notícias 
e as gentes
num equilíbrio 
num fio de luz
e aço
sob uma lâmina de asfalto
muitas vidas esperam por nós
lá fora
na
cidade
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eu não sou sempre correto
mas sou direto
e tenho em mim várias dores
inconfessáveis 
a vida é uma ferida?
o coração lateja?
o sangue é uma parede cega?
e se tudo
de repente
se apaga?
queria a paz dos caminhos
e um amor
sem
volta
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"para que serve a utopia? 
serve para isso: 
para que eu não deixe de caminhar."
Eduardo Galeano
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um ato de amor não tem volta

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eu
desço 
até 
onde
não 
me
encontram
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alguma
minha
descrição:


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o vazio
mal visto
abaixo 
da 
memória:

















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as coisas que vem 
aos poucos
muito pouco
as coisas
insuficientes...
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dentro da palavra













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a poesia fez de mim uma ilha
onde as palavras pousam
inceindeiam
tudo
impiedosamente
— e partem
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aqui espera-se
um rato morto
esperar a morte
é como um vício 
toda gente tem
que superar
isso
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"assim eu quereria meu último poema
que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
a pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
a paixão dos suicidas que se matam sem explicação."

O Último Poema - Elizabeth Bishop
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a luz azul sobre a mesa do quarto
que nunca desliga
por defeito
está muito longe 
de saber
e se olha
talvez com orgulho
imitando a lua
muito além do sonho
ou então só dorme de dia
e nunca
se
apaga
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360º

no fundo desse mundo inverso
onde o esquerdo é que é o direito
e tudo acontece
ao reverso
como uma moeda atirada
a sorte roubada
num
susto
onde as sombras são os corpos
e as árvores são as veias
onde os troncos 
nunca se deitam
e o céu é raso como um rio
quase seco 
o mais profundo
é aguardar 
alguém 
que se
ama
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terra seca
me empresta
os valos do chão 
as veias de água 
escondidas
me mostra o seu 
subsolo
gente seca
me mostra sua
gentileza
me descansa 
de sua
crueza
sem precisar
me descrever 
em pedras
impedindo 
cada frase
volume
e movimento
o peso das 
coisas
que 
podem
ficar
bem
leves
estou cansado
de tantos
terremotos
estou cansado 
de palavras
tanto
a terra
quanto
eu
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"Tornar imprevisível a palavra 
não será uma aprendizagem 
de liberdade?"
Gaston Bachelard
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em vermelho
desfaleço
enquanto
ainda 
sou
fogo
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amor
assim
diluído 
em pequenos
frascos
para
grandes
corações
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um dia de sol lá fora
mas a luz me ofusca
então uso as palavras
para enxergar melhor 
sigo
na
penumbra
das
nuvens
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a noite
cheia de estrelas
de destinos
constelações 
que considerações 
condizem com a poesia
nesse tamanho de escuro
imenso? 
liberdade ou jugamento?
qual a parte que me respira neste
profundo céu de estrelas?
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quando me canso de tanto tédio 
saio para o sol em disparada
asa esvoaçando pela rua
fumaça
virtude 
e os vícios misturados
morro um pouco
às vezes um pouco de choro
na couraça do meu corpo
um louco
escorre e
volto em mim
e então
de novo
só enxergo a guerra 
em todos
os 
olhares
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não vou ressuscitar 
o desejo
de morder 
o vidro do teu coração
e criar um vício 
em
cacos
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o julgo da palavra
o rosto empoderar
possa empoderar
empoderei 
poderei
posseiro 
empoderar
empoderador
por ser sincero
com desdém 
não te leio
pondero
empoderar
com um incêndio 
essa palavra
eu ordeno
empoderar
empoderei
empoerei
e sujo vocabulário 
desamparei
empoderei a podreria
passe longe da minha mente
empoderador
do possível incêndio 
empoderar não tem encanto
desencanto
e impotência 
desbastar a palavra
até que perca
seu falso
encanto
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eu vi
um sol vivo
lá fora
um tom no
outono
ou só sono
enquanto
do canto
do quarto
meus pés 
avançam pelos ares
para o novelo
da nebulosa
poesia 
cedo
julho
abrir
a voz
as provas
dos
deuses
que falham
um consolo 
em vôo
aberto
colhe dos céus 
azuis
com os laços
das sobrancelhas
dos homens
sérios 
abaixo do anil
do céu 
há mil
deles
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gentes
que fogem no tempo
como água corrente
a água é um espelho 
móvel 
o tempo tem redes
nós somos os peixes
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hoje de novo sigo a lida
para a vida
o varejo
a venda
o dinheiro que não entra
e guio as horas na poesia
contra a maré da mercadoria
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eu prefiro
ser infantil
que 
acadêmico:
















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"às vezes acho, sinto, que estou quase raspando no não nome, 
no não centro, no centro do quase nada, no nada do quase, 
até lá. mas, logo, então, resisto. 
retorno para o nome errado das coisas que são quase coisas, 
quase palavras, quase reais. fico aqui, onde se pode, por pouco, 
ainda fazer uma coisa, quase nada, pelo que não foi, 
não é, talvez seja. quem sabe lá, onde quase fui, que avistei, 
também desse, mas lá é tão longe, tão perto, não vou, não."
Noemi Jaffe
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para Vini Miranda

uma flor não é a flor
não é uma flor qualquer
azul?
pode ser
para combinar com o azul de qualquer mar
ou do céu
para ser livre como todos os ideais de vida
sem criar raízes
flores azuis com asas
livre como não sou
livre como não sei o que é ser livre
mas imagino
tento
uma flor qualquer
azul
livre
com asas
ser
.......................................................


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