"velho, não.
entardecido, talvez.
antigo, sim.
me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
e eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome "
A Adiada Enchente
- Mia Couto, em "Idades cidades divindades".
Lisboa: Editorial Caminho, 2007.
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little ghost |
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para vivenciar
nada
basta embrulhar
a chuva
esperar a noite
e sentir frio
nas pernas
encolher insetos
espalhados no quintal
observar nuvens
e notar só que são brancas
olhar os outros
e desviar
os olhos
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sou
apenas um tradutor de silêncios
pois eu não vivo por extenso
apenas sou a vida
um relâmpago
intenso
um som alto depois de um
tempo
sou um galho sustentando
o sexo dos homens
e alguns erros
de relações
complicadas
as intensidades
não me permitem
ser tão pouco
por isso
a loucura
de toda falta
me consome
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a mim me faltam
as noções das coisas do mundo
do tal jeito que elas são.
tenho uma espécie de lucidez
de que todos falam
mas a minha
é a lucidez do absurdo
dessa eu tenho
no meio de toda
e qualquer
paixão
acredito que um dia
vou ter um surto
de paixões
tão intensas
e represadas
que vou
enlouquecer
de
vez
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não me enquadro
não me enquando
a poesia seria maior
e essa é sua beleza
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um grafite
no céu
da cidade
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queria que ficasse
aqui
aquele olhar
a caminho da curva
da próxima rua
foi assim que aprendi a cidade
pedra
aço
e lascas de cristal
foi aqui que aprendi
a amar
desordenadamente
tenho um tempo breve
para amar
todos os dias
à mesma hora
e observar corpos à distância
nessa manhã toda azul de frio
sensação urbana de tendões
poros
e carne
e sono
os olhos vendo os avessos
diluídos em chamas
salgadas
pouquíssimas lágrimas
de manhã é
a labareda do meu corpo
invisível
nu
.......................................................
tenho na retina
que mal vejo
corpos
imperdoavelmente disponíveis
diluídos
na poeira das multidões
até que um dia
alguém me escute
sem que eu veja
e perceba
alguma diferença
no modo de sentir
- não de olhar
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estranho bastante
todo inferno
é uma disciplina
como qualquer outra
dias de gosto amargo
e rosas
intensas
pagos a peso de medicamentos
na cidade aberta
a incômoda
luz
mas inevitavelmente
a cidade faz-se todos os dias
envelhece
ruas tornam-se antigas
acontece o mesmo com os prédios
e outros
aparecem
novos
espelhos
libertos
atravessando
a linha
difícil
do horizonte
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gosto das novidades
de adolescentes indecisos
gosto deles assim lentos
inaptos
vorazes
sedentos
de curiosidade
anjos com asas imensas
senhores do caos
é para longe que partem
sempre
para as matas
o primeiro dos elixires
que dizem mágicos
bebido
de boca em boca
alerta-os
sem perceberem
que
acabam voltando
às palavras
e aos gestos de antigamente
cumpra-se o jogo
e ninguém suspeita de nada
a experiência
ditará
seu
destino
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agora
que aquele mundo acabou
definitivamente
uma cidade sem volta
resta apenas o eco
de pouquíssimas
vozes
sou o homem que resta
e erra
de cidade
em cidade
conhece a verdade das paredes
o brilho espelhado dos edifícios
imensos
o imenso equívoco
onde me perco
nas ruas
e sei
sempre saberei
que a velha casa
como era
já não estará mais
lá
nem a casa nem a memória
nem eu quero que estejam
porque tudo foram dores
varridas por um sopro
e um olhar vacilante
assustado
entre ruínas
onde se travava
uma batalha
constante
contra
a solidão
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cansado e lento como um rio
o corpo imóvel
sobre a cama
o rosto tenso
o peito ardente
e a perna arqueada
sentindo dores
na coluna
arquitetada
até sacudir
qualquer lágrima
e vazar
no mar
tenho na retina
corpos
imperdoavelmente disponíveis
mas distantes
soltos a serem descobertos
na poeira das multidões
até um dia
que um desses corpos
me descobrir
como objeto
de prodigiosa
felicidade
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"são, como deuses, animais sem cio?
ou são, como animais, humanos que se aceitam?"
Jorge de Sena
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agora que o sorriso
envidraçado das janelas
me envolve
e os dias
enrolaram-se
nos meus pés
sou aquele a quem
milhares de faltas doem
como dói uma noite de ausência
vozes e silêncios
enumerados
na
escuridão
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a noite toda o frio
dissolvendo-se na manhã
em um céu claro
edifícios
elevadores a prumo
levando notícias
e as gentes
num equilíbrio
num fio de luz
e aço
sob uma lâmina de asfalto
muitas vidas esperam por nós
lá fora
na
cidade
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eu não sou sempre correto
mas sou direto
e tenho em mim várias dores
inconfessáveis
a vida é uma ferida?
o coração lateja?
o sangue é uma parede cega?
e se tudo
de repente
se apaga?
queria a paz dos caminhos
e um amor
sem
volta
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"para que serve a utopia?
serve para isso:
para que eu não deixe de caminhar."
Eduardo Galeano
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um ato de amor não tem volta
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eu
desço
até
onde
não
me
encontram
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alguma
minha
descrição:
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o vazio
mal visto
abaixo
da
memória:
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as coisas que vem
aos poucos
muito pouco
as coisas
insuficientes...
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dentro da palavra
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a poesia fez de mim uma ilha
onde as palavras pousam
inceindeiam
tudo
impiedosamente
— e partem
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aqui espera-se
um rato morto
esperar a morte
é como um vício
toda gente tem
que superar
isso
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"assim eu quereria meu último poema
que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
a pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
a paixão dos suicidas que se matam sem explicação."
O Último Poema - Elizabeth Bishop
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a luz azul sobre a mesa do quarto
que nunca desliga
por defeito
está muito longe
de saber
e se olha
talvez com orgulho
imitando a lua
muito além do sonho
ou então só dorme de dia
e nunca
se
apaga
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360º
no fundo desse mundo inverso
onde o esquerdo é que é o direito
e tudo acontece
ao reverso
como uma moeda atirada
a sorte roubada
num
susto
onde as sombras são os corpos
e as árvores são as veias
onde os troncos
nunca se deitam
e o céu é raso como um rio
quase seco
o mais profundo
é aguardar
alguém
que se
ama
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terra seca
me empresta
os valos do chão
as veias de água
escondidas
me mostra o seu
subsolo
gente seca
me mostra sua
gentileza
me descansa
de sua
crueza
sem precisar
me descrever
em pedras
impedindo
cada frase
volume
e movimento
o peso das
coisas
que
podem
ficar
bem
leves
estou cansado
de tantos
terremotos
estou cansado
de palavras
tanto
a terra
quanto
eu
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"Tornar imprevisível a palavra
não será uma aprendizagem
de liberdade?"
Gaston Bachelard
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em vermelho
desfaleço
enquanto
ainda
sou
fogo
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amor
assim
diluído
em pequenos
frascos
para
grandes
corações
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um dia de sol lá fora
mas a luz me ofusca
então uso as palavras
para enxergar melhor
sigo
na
penumbra
das
nuvens
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a noite
cheia de estrelas
de destinos
constelações
que considerações
condizem com a poesia
nesse tamanho de escuro
imenso?
liberdade ou jugamento?
qual a parte que me respira neste
profundo céu de estrelas?
.......................................................
quando me canso de tanto tédio
saio para o sol em disparada
asa esvoaçando pela rua
fumaça
virtude
e os vícios misturados
morro um pouco
às vezes um pouco de choro
na couraça do meu corpo
um louco
escorre e
volto em mim
e então
de novo
só enxergo a guerra
em todos
os
olhares
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não vou ressuscitar
o desejo
de morder
o vidro do teu coração
e criar um vício
em
cacos
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o julgo da palavra
o rosto empoderar
possa empoderar
empoderei
poderei
posseiro
empoderar
empoderador
por ser sincero
com desdém
não te leio
pondero
empoderar
com um incêndio
essa palavra
eu ordeno
empoderar
empoderei
empoerei
e sujo vocabulário
desamparei
empoderei a podreria
passe longe da minha mente
empoderador
do possível incêndio
empoderar não tem encanto
desencanto
e impotência
desbastar a palavra
até que perca
seu falso
encanto
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eu vi
um sol vivo
lá fora
um tom no
outono
ou só sono
enquanto
do canto
do quarto
meus pés
avançam pelos ares
para o novelo
da nebulosa
poesia
cedo
julho
abrir
a voz
as provas
dos
deuses
que falham
um consolo
em vôo
aberto
colhe dos céus
azuis
com os laços
das sobrancelhas
dos homens
sérios
abaixo do anil
do céu
há mil
deles
.......................................................
gentes
que fogem no tempo
como água corrente
a água é um espelho
móvel
o tempo tem redes
nós somos os peixes
.......................................................
hoje de novo sigo a lida
para a vida
o varejo
a venda
o dinheiro que não entra
e guio as horas na poesia
contra a maré da mercadoria
.......................................................
eu prefiro
ser infantil
que
acadêmico:
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"às vezes acho, sinto, que estou quase raspando no não nome,
no não centro, no centro do quase nada, no nada do quase,
até lá. mas, logo, então, resisto.
retorno para o nome errado das coisas que são quase coisas,
quase palavras, quase reais. fico aqui, onde se pode, por pouco,
ainda fazer uma coisa, quase nada, pelo que não foi,
não é, talvez seja. quem sabe lá, onde quase fui, que avistei,
também desse, mas lá é tão longe, tão perto, não vou, não."
Noemi Jaffe
.......................................................
para Vini Miranda
uma flor não é a flor
não é uma flor qualquer
azul?
pode ser
para combinar com o azul de qualquer mar
ou do céu
para ser livre como todos os ideais de vida
sem criar raízes
flores azuis com asas
livre como não sou
livre como não sei o que é ser livre
mas imagino
tento
uma flor qualquer
azul
livre
com asas
ser
.......................................................
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