sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

das inquietações...

.
"Quem não tem poesia caça com crônica."
Julio Carvalho
.
diálogo
.
berro_erro

as pessoas
têm falado muito baixo
sempre um nome
as pessoas reduzem-se a um nome
a linguagem agrava as coisas
a língua ficou manca diante de tanto erro e uso
tornou-se impossível falar o indizível
começarei a gritar segredos
quero respirar todo o céu que nos esconde um do outro
quero dessegredar
sua boca
.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

das criações...

.
"Eu amo a rua.
Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim
se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor
assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós.
Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais;
nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos,
com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une,
nivela e agremia o amor da rua.
É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel,
o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas.
Tudo se transforma, tudo varia o amor, o ódio, o egoísmo.
Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia.
Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis.
Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua."

A Alma Encantadora das Ruas - João do Rio
.
abasteça
.
penúltimo dia

crio hipóteses para um amor de verdade
crio coragem pelo fruto da necessidade
crio desejo de repetir alguns erros
crio vontade de mudar sem medo
crio respostas para velhas perguntas
crio novas perguntas sem nenhuma resposta
crio um caminho para refazer a viagem
crio espaços para novas mensagens
crio versos que saúdam as mudanças
crio um espírito com mais esperança
crio um corpo com menos desgosto
e recomeço tudo
de novo
.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

das possibilidades...

.
"Para onde vou, de onde vim?
Não sei se me acho ou me extravio.
Ariadne não fia o seu fio
à frente, mas atrás de mim.
Não será a saída um desvio
e o caminho o verdadeiro fim?

Não é hora de regressos
Não é hora

É certo que me perco em sombras
e que, isolado em minha ilha,
já não me atingem as notícias
dos jornais a falar de bolsas,

modas, cidades que soçobram,
crimes, imitações da vida
ou da morte televisiva,
quadrilhas, teias penelópicas

de horrores ou de maravilhas
que dia a dia se desfiam
e fiam sem princípio ou fim
novíssimas novas artísticas,
científicas, estatísticas...
e há na noite quente um jasmim.

É aqui, mais real que as notícias, na própria
matéria, na dobradura de uma folha
em que se refolha este meu coração
babilônico, na configuração
da mancha gráfica sobre a tessitura
do papel tensionado, ou onde se apura
o lusco-fusco produzido por linhas
e entrelinhas, entre o preto e o branco e o cinza,

onde cada ideia, cada ponto e vírgula
dos trabalhos e das noites se confunde
com miríades de pontos de retícula
e meios-tons de clichês, entre o passado
que jamais está passado e alguns volumes,
linhas e planos apenas esboçados,

que súbito os elementos mais dispersos
se articulam, claro-escuro filme negro,
entre a pura matemática, o acaso
e a arte (esta árvore já foi vestido
de mulher) onde meu delírio é mais preciso,
transparece o meu jornal imaginário.

Para onde vou, de onde vim?
Não sei se me acho ou me extravio.
Ariadne não fia o seu fio
à frente, mas atrás de mim.
Não será a saída um desvio
E o caminho o verdadeiro fim?"

Antônio Cícero
.
senão
.

.
os pre_textos possíveis

"a criação da poesia é um processo
parecido com o dos sonhos." Beatriz Bracher


quero escrever porque
dói muito é não conseguir escrever
meu refúgio são as coisas em branco
tudo é a fazer
e poder fazer
tudo é um problema de forma
que acaba sendo um problema de alma
toda criação é um acidente de percurso
e acontece dentro d'água assim:
o rio das coisas flui
invisível
aos desavisados
mas aos olhos do poeta
é riso
mesmo sabendo que as estantes de poesia
de todas as livrarias
são bastante solitárias
(como eu)
do rio da vida
rio
em tempo penso
que as pessoas são difíceis
eu queria ser mais fácil
eu queria impersonar
.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

das tecnologias...

.
"Por quê os animais tem olhos no lado da cabeça?
São poucos os que tem olhos na frente como nós.
É porque o perigo real vem dos lados ou de trás.
A velocidade achata a visão, como uma tela."

Paul Virilio
.
periphery
.
acidentes causados pela velocidade

é criada a consulta diária da morte
desde a colisão das partículas até a colisão do homem
com o próprio homem
com a própria pele
com todos os seus apocalipses
com círculos vagando sobre o mesmo assunto
do fim

o mundo agora contêm
a sincronização das emoções coletivas
a formação de uma terceira bomba
o controle pela administração do medo
o corpo na periferia
de tudo

nada mais é menor
nenhuma alma é pequena
o mundo se tornou um lugar veloz
que qualquer pessoa por pessoa
pode descobrir
instantâneamente
o seu gatilho

agora aqui habitam
seres humanos menos orgânicos
seres estranhos
.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

das revelações...

.
"Natal, e não Dezembro
Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada."

David Mourão-Ferreira
.
poetic
visceral
.
a violência do nosso desejo

aparei as mãos
só pude perceber salva as lágrimas
passadas
e um corpo úmido no meu colo
desastre tardio não abarcado pelo sentido
não deu tempo de perceber o acontecido
quando se viu já era um choro

mas tudo aquilo que me move
ainda não foi perdido
nem conto perder
todo prumo se perde de vez em quando
mas isso não conta quando muito é parte
vontade

como se espera um equilíbrio
a partir disso?

o corpo nunca obedece o desejo...
.

sábado, 18 de dezembro de 2010

das estações...

.
"o silêncio serve para esticar as palavras"
Pedro Calouste
.

.
nowhere near here

*
meu
que
líquido
estou só
lido hoje

**
sou um mineiro
que chegou à superfície
com felicidade e pedras
.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

das citações...

.
"Uma transformação recente de que quase ninguém fala é a extinção de algumas palavras.
Pode parecer uma bobagem vernacular, mas não é.
A linguagem (ainda) é a forma mais eficiente para a transmissão de ideias.
Um termo que desaparece ou tem seu significado esvaziado costuma indicar
que são poucos os que ainda pensam no assunto.
"Original", por exemplo, é uma palavra que perdeu importância e vem, aos poucos, perdendo o sentido.
À medida que produtos, serviços e relações são cada vez mais compostas
de ideias e cada vez menos de matéria, ter originalidade perde relevância.
Por mais criativas que sejam, ideias não têm substância.
É impossível encontrar sua semente original, seja para preservá-la ou para destruí-la.
Outra palavra que desapareceu foi o Futuro. Assim, em maiúsculas,
o grande Futuro substantivo, a Utopia para a qual seguiríamos de mãos dadas.
Mesmo sendo fundamental para a construção de praticamente todas as sociedades
e religiões ocidentais, ele vem desaparecendo.
Ainda se fala no amanhã, no porvir,em tempos futuros.
Mas eles são vários, individuais, pequenos.
Falar em um único e abrangente Futuro parece, ironicamente,
uma coisa velha e ultrapassada.
Não se sabe exatamente quando foi que pararam de falar nele.
Desde a metade do século passado, a migração e a urbanização misturaram culturas,
valores e ideais de uma forma sem precedentes, eliminando absolutos e certezas.
E, onde não há unanimidades, não se pode determinar com precisão o caminho a seguir.
.................................................................................
O Paraíso e o Armagedom caminham de mãos dadas.
Eles estão sempre próximos, mesmo que nunca se manifestem.
Em uma economia de ideias, símbolos são mais tangíveis do que originais."

Luli Radfahrer - O fim do futuro - folha@luli.com.br
Fonte: Caderno TEC da Folha de São Paulo, quarta-feira, 15 de dezembro de 2010.

.
my year in status
.

das conclusões...

.
"seus textos dão
a sensação que tudo está suspenso
como se levita
como se evita
e debitas no seu blog
a sensação de que tudo se edita
mas tudo se acredita
e fica o dito pela voz da sempre dita
cuja
poesia."

Roberto Laplagne - twitter @rlaplagne
.
shoes
foto by Roberto Laplagne
.
anuário
as histórias não precisam ter um final

0102 ao contrário
coisa lida
ano reverso
poção mágica
de letras
em trezentos e sessenta e cinco
dias escritos
uma porção de coisas lidas
servidas numa tela que se come
a frio

(as letras fazem o meu próprio elogio)

seguro o que escrevo contra o peito
a quente
um ano escrito é um ano revelado
e no final
2011 em diante...
.

dos fragmentos...

.
"encantar-te-ás com os poetas até conheceres um.
com calças de poeta, camisa de poeta e casaco
de poeta, os poetas dirigem-se ao supermercado.

as pessoas que estão sozinhas telefonam muitas vezes,
por isso, os poetas telefonam muitas vezes.
querem falar de artigos de jornal, de fotografias ou de postais.

nunca dês demasiado a um poeta, arrepender-te-ás.
são sempre os últimos a encontrar estacionamento
para o carro, mas quando chove não se molham,

passam entre as gotas de chuva.
não por serem mágicos, ou serem magros, mas por serem parvos.
a falta de sentido prático dos poetas não tem graça."

José Luís Peixoto, em A Gaveta de Papeis
.
fragments

.
quase inteiro

eu vivo
do pedaço de cada um
meu alimento é fato
de alguma coisa feita de afeto
tenho as casas e algumas causas ganhas
e mais do que isso
tenho continuado e
até onde eu posso
eu vivo
.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

das estratégias...


"Se chovesse (sempre) trezentos e sessenta e cinco dias por ano,
e as nuvens no céu se repetissem na cor,
na forma, na velocidade, e na lentidão;
e se o sol permanecesse robusto e alto, constante
como o último andar de um edifício (bem construído),
de calor assim assim mas repetindo assim assim
de calor da véspera;
se o mau e o bom tempo fossem uma linha única,
paralela aos dias; se o verão e o inverno
em vez de dois fossem um,
como uma pedra é um, e uma árvore é um,
se, enfim, quem amas permanecesse amado por ti,
hoje exactamente como ontem,
e daqui a trinta anos exactamente como hoje;
então não existiria o tempo,
e os relógios de pulso seriam pulseiras ruidosas,
mecânicas de mais para estarem tão próximas da mão
capaz de tocar com leveza.
E se não há tempo
.........................não podemos trair."

O Amor - Gonçalo M. Tavares - em "1"
.
cards small
.
blefe

mesmo sem dar as cartas
sem dar as caras
a poesia ainda é isso
(algo como o amor)
mesmo que outros escrevam
muitas coisas
com o mesmo nome
.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

das metades...

.
"todo amor é pouco
em alma inquieta
todo sonho é louco
num poeta
toda dor é breve
como uma fumaça
o poeta escreve uma canção
e a mágoa passa
todo coração
que se vê no fundo
anda n'outro chão
é outro o seu mundo
todo sonhador
tem olho de esplendor
é a estrela guia da poesia
dentro do compositor
nada é de um só ]eito
salve a diferença
tudo feito com paixão
compensa
o poder da mente
não se prende em cela
é deus recriando a criação
por ela
e ela é bela, é
porque não tem fim."

Recriando a criação - Chico Pinheiro/ Paulo César Pinheiro
.

.
uma coisa menos sábia do que o silêncio

*
tenho olhos
que demoram tempo
em decifrar certas palavras
a fala tem o momento exato:
por isso
não procuro o amor entre os carros
porque corro o risco
de ser
atropelado
nos faróis

**
me deixa sozinho
quero entender
os meus parênteses

***
parti em dois:
foi um perdido
pra cada lado

****
amor não é abstrato nem grande. é prático e pequeno. amor é quer um pouco?
.

das surpresas...

.
"A experiência poética para mim é uma aventura existencial
que acontece num momento que me surpreende,
e quando me surpreende o poema nasce."

Julio Carvalho
.

.
horários

vazios horizontais
vazios verticais
vazios de horas
vazios de dívidas e vidas
vazios de meio-dia
vazios de âncoras e cais
vazios de mágoa
vazios de marcas e água
vazios plenos
vazios planos e acenos
vazios anônimos
vazios crônicos
vazios adeus
vazios meus
.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

das belezas...

.
"como se houvesse outro ângulo para o fôlego
como
se houvesse."

Bruno de Abreu
.

.
pure utopia
.
possessão

muita beleza causa medo
tanto da coisa acabar logo
quanto da coisa não acabar nunca
e não ser possuída
muita beleza causa certos
egoísmos
.

domingo, 5 de dezembro de 2010

das cicatrizes...

.
"mientras relamo
mi propio cuerpo herido
y cicatrizo."

Rosa Lesca
.
significato

.
mais do mesmo com cicatrizes

o significado do corpo
é não pertencer a nenhum outro
a não ser que tenha algum
significado

o significado é raro e depende de alguém
o olhar certo na alma de quem tem
amor
faz a diferença
entre estar aqui e se apaixonar
estar fora dos desvios e saber onde o caminho vai
mesmo arriscando
assim vive
quem só sabe
amar
.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

dos incendiários...

.
"amor nunca é de um só
amor tem que ser de dois
senão ele fica menor, ai
amor que é de um só só dá dó
é dor que ninguém supôs
ponto que não tem nó
e que se desfaz depois
amor é de mais de um
de dois que se faz um amor
senão ele fica comum, ai
senão ele perde o valor
se é que já teve algum
se é que já teve ardor
se é que era amor de brasa
pois o amor
é feito flor de fogo em casa
é o que é
é um homem semeando
labareda na mulher."

Flor de Fogo - Chico Pinheiro/ Paulo César Pinheiro
.
neo christmas 01
page

.
acentuação

eu já não sei quem
é
essa outra pessoa
de
manias
tão grandes
e mãos tão vazias
sobrevivendo
de pequenas euforias

eu já nem sei quem
é
que faz da alegria
o pão de cada dia
e a outra história
mal contada da memória
apagada
mal escrita na palavra

a outra coisa que

eu já não sei quem
é
está longe de ser assim
alguma coisa sempre
guardada no coração
até o fim
.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

dos fantasmas...

.
"aparições estão por aí, nas entrelinhas. latejam. vibram.
sabemos que existem porque se desdobram,
porque produzem ondas (ressoam) e se revertem em escrita.
porque os poetas, através da luva fina das palavras, as tocam.
é muito pequeno, eu sei, é muito pouco.
mas é tudo _ e é pegar ou largar."

José Castello
.

by journeytoanewworld
.
tragédia dos comuns

que nada
eu sei que tudo vai dar em água
e que águas pesadas não movem moinhos
cansado de pensar só para vento dentro
do corpo
esvaziada_mente
mandar vir outra de espírito mais forte
que aguente firme
ainda tenho uma vida por fabricar
não esperar muita coisa
não esperar coisa nenhuma
não olhar em volta
manter a rotina
única saída
impôr-se um silêncio durante os dias
civilizadamente
um tempo de espera
de ação suspensa
onde não existe idade
ainda tenho um corpo que pesa
e espero o próximo passo
lento

vêm aí dias difíceis
.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

das coragens...

.
"estranhem o que não for estranho.
tomem por inexplicável o habitual.
sintam-se perplexos ante o cotidiano.
tratem de achar um remédio para o abuso
mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra."

Bertolt Brecht
.
positive2
image from www.postsecret.com
.
voraz
à todos que mantém a palavra calada sob alguma condição

sempre calei muito
sempre feito um bobo
olhava tudo sem malicia
sempre contei com o mundo e as coisas
aparentemente boas
mas certas coisas diziam sempre não
e não e não e não
e veio o grito
o grito de dizer ondes
porquês e desejos e expor medos feito
alguma coisa grudenta no corpo que
tinha que ser arrancada
junto com outras todas
que incomodavam
muito muito muito
antes dessa coragem de falar
aqui não tinha eu
eu não sabia do meu corpo
que estava coberto de outras vergonhas
das palavras dos outros
outros e outros e outros
o primeiro grito veio e depois outro
outro e outro e outro
agora entendo melhor
tudo o que foi feito
daqueles silêncios
.