quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

da lucidez...

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"e o que foi a vida?
uma aventura obscena
de tão lúcida"
Hilda Hilst
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cúmplices 

a vida e eu
e o que é a vida?
uma sucessão 
de pequenas 
sortes onde não faço 
do difícil o meu ofício 
e anda súbita 
por trás dos vidros
a óculos vistos
e outras vidraçarias 
e vitrais
eu faço tudo
o que posso fazer
eu lanço para os deuses
essa alma incendiária 
e que eles a aumentem
para criar
versos 
desse deus poema
que ajoelha e me adora
e não faz disso alarde
o silêncio 
é meu poema
mais verdadeiro 
está em um nada 
ainda não escrito
e cheio de disfarces 
vivo com a intensidade da arte
que deus tenha pena
desse silêncio 
que acredito
esse poema maldito
calado
possivelmente
atropelado
com todo gozo
no meio da rua
desgarrado
do meu manancial
de palavras
essa poesia toda
destoada
é minha
realidade 
imaginada
onde vivo
por trás dos vidros
tentando em vão 
possuir
o que me possui
esse ser de silêncio 
muito maior do que eu
evita as pistas duplas
e as janelas abertas
já não basta ontem
ter vomitado
todos esses silêncios 
nas mais diferentes formas 
e enjoos
enojado com esses seres
desumanos
e cansado
de conviver com seres da sombra
que se apegam à vida 
assim que se sentem 
necessários 
esse enjoo
passou
depois fiz um chá
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e então praticar tudo
bem ou mal
mas repentinamente
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todas as estações 
mais as infinitas...
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estamos todos átomos
atônitos
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sábado, 24 de janeiro de 2015

dos desvarios...

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"EMPREGADA: Madame, é Madame de Perleminouse.
MADAME:  Ah! que cacho! Faça-a engordar!
EMPREGADA: A senhora condessa de Perleminouse.
MADAME: Ah! Querida, queridinha pelúcia! 
Há Quanto tempero, há quantas pedrinhas eu não tinha o doceiro de te açucarar!
CONDESSA: Nem queiras saber, querida! Eu andei tão envidraçada! 
Meus três filisteuzinhos tiveram limonada, um depois do outro. 
Passei todo o começo do corsário chocando moinhos, 
correndo do rufião para o tamborete, 
passei noites controlando os carburadores, 
distribuindo alicates e pororocas. Enfim, não tive um só minueto livre!
MADAME: Pobrezinha! E eu que nem descongelava de nada!
CONDESSA: Melhor assim! Bem que merecias descampar, 
depois das borrachas que queimastes! Imagina! 
Desde o fez de Paio até meados do Fuzil ninguém mais te viu, 
nem no Water-proof, nem nos entremeios da Pinta da Boa-Crista: 
Devias estar mesmo muito congestionada!
MADAME: É verdade... Ah! que solvente! Não posso nem molhar nisso sem escurecer...
CONDESSA: Então, nada de cocadas?
MADAME: Nada.
CONDESSA: Nem um biscoitinho?
MADAME: Nenhum! Ele nem se dignou a se remexer, 
desde a pia em que gargarejou!
CONDESSA: Que sacristão! Devias ter-lhe raspado umas brasas!
MADAME: Foi o que fiz: raspei-lhe quatro, cinco, seis, talvez, 
em poucos holandeses; ele nunca castigou...
CONDESSA: Ah! Coitadinho do meu chazinho de melissa... 
Se eu fosse tu, arranjaria outro elefante!
MADAME: Impossível! Vê-se logo que não o aqueces! 
Ele me carabina completamente! Sou sua mosca, sua luvinha, seu bem-te-vi! 
Ele é meu bambu, meu trombone de vara. 
Sem ele não posso nem espremer nem latir; jamais o fecharei! 
Mas que revoada que sou! Não queres flutuar alguma coisa? 
Uma bolha de zulu, dois dedos de víspora?
CONDESSA: Obrigada, com muito esplendor.
MADAME: Mary!... Mary!... Oh! essa calçada! 
É turca como uma porca! Com licença, preciso ir à magistratura, 
esconder esse chinelo. Solto dentro de um minueto (sai)."

Uma peça por Outra - Jean Tardieu
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photo by Marian GrrltsMarian Grrlts



































S.O.S.
Julio Carvalho & Cristiane Amatucci

salve-se quem puderes
e quem quereres
e afogue-se quem não suportar
e flutue quem aguentar
e navegue quem amar
se bem que amar
está mais
para um estado de voar
voar sem sair do lugar
coisa para poucos
comparável
aos loucos
mas porque navegar
para sempre
se não se pode amar?
porque
é preciso um porto
uma chegada
um lugar pra ficar
um colo
um respiro
da loucura
que ausente
me dispo
o absurdo
é o nu
da palavra poética
o lugar é nulo
o mar é o verdadeiro sentido
em terra
só sobrevive
o fim
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des_vários
Julio Carvalho & Cristiane Amatucci

existe em poucos
um desvio
primordial
poéticamente
absurdo
os outros
são um tanto cegos
a sensibilidade
é uma escuridão opcional
a sensibilidade
é a permissão
de ver
com os olhos vendados
e os pés fora do chão
como um astronauta
ou um submarino:
perde-se o ar
perde-se o mar
mas a terra
sempre à vista
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é tanto tempo
e as histórias vão e voltam
e se confundem:
a memória
é o próprio
círculo
humano
infinitamente
reconstruído
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se não há fim
não há tempo
não existe marcação de tempo
estamos átomos
todos
presos na ausência de tempo
atônitos
numa condição 
de eterna
espera
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das presenças...

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"emerso,
chafurdava em emoções:
tinha desejos violentos,
pequenas gulas,
urgências perigosas,
enternecimentos melados,
ódios virulentos,
tesões insaciáveis.
ouvia canções lamurientas,
bebia para despertar
fantasmas distraídos,
relia ou escrevia
cartas apaixonadas,
transbordantes de rosas e abismos."

C.F.A. - Morangos Mofados
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praça das artes


































presença
                     para  Gizah Santos

ouvindo 
as delicadezas
de um ruído 
causado
pelas pedras
amarradas 
a uma estrela
que se chocam
contra a lateral
do velho armário 
no canto escuro
do quarto
um som
acontecido
pelo sopro silencioso 
do ventilador 
ligado 
no meio da noite
- é quando o ruído 
de uma estrela
desperta 
uma lembrança boa
antes de qualquer
sonho
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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

dos amanhe_seres...

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"Aceitar o mistério é muito importante. 
Quando o homem perde o sentimento
do assombro, a vida perde o sentido. 
Não é à toa que em que para mim fazer poesia é um "mistério". 
O ofício do poeta, porém, não pode permanecer misterioso. 
Se a mão que empunha o martelo não tiver um movimento preciso, 
atingirá o dedo e não o prego. 
A antiga função da poesia deve ser sempre respeitada, 
mas não com aquele respeito que dá sono. 
Há sempre uma escada a ser galgada, levando a níveis superiores de qualidade. 
Mas onde encontrar essa escada? 
Seus degraus são os detalhes, detalhes minúsculos, a cada instante. 
A arte dos detalhes é que conduz ao coração do mistério."

Julio Carvalho - Adaptado de Peter Brook
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diariamente
ao amanhecer
desperta
de pesadelos 
e sonhos
breves
e uma leve 
névoa 
o leva ao 
entardecer
até que a luz fraca 
cansada a visão 
de letras
tão mínimas 
o faz
anoitecer
se
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nasci assim meio estranho
incomodado
poeta
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o estreito
é o coração 
quando
na ausência
estreito 
é o nu
e a vergonha
estreito
é ler sem óculos 
sem ver direito
estreito
é desamar
de qualquer
jeito
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não morrerei 
por ter as mágoas 
paradas na estação 
errada
do ano
não morrerei 
em lágrimas 
nem me afogarei
em enigmas
feitos
pelas mãos 
de outros
meu repouso
é a represa
densa
em calmaria
que escapa da arte
das armadilhas
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uma palavra olhando o tempo
uma palavra olhando o pensamento 
uma palavra olhando o corpo
uma palavra olhando o céu 
uma palavra olhando o mar
uma palavra olhando o amor
uma palavra olhando todas as palavras:
infinito
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seu rosto
não será o último 
depois de tantas voltas
que dei
seu rosto
não estava mais lá 
portanto
o caminho também não podia estar
os rostos
não duram
nem os caminhos 
não é que o rosto
estivesse em toda parte
seu rosto 
na verdade
não esteve
em parte alguma
nunca
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acontece em mim 
a poesia 
como ordem 
para reordenar 
aquilo 
que me desmorona
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não consigo dormir
tenho um poema 
atravessado
nos meus olhos
se eu pudesse 
falaria
que fosse embora
mas tem outro poema
atravessado
na minha garganta
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toda palavra é poesia em estado de gravidez
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pequenas 
artimanhas
das
sombras
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das degustações...

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"junta as letras
de todas as lápides
pega e joga no
papel

em cima
colocar palavras do lado
embaixo

o significado?
não te cabe
são pelo menos
7 bilhões"

O Fazer Poético - Rafael Felice Dias
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degustação 
Julio Carvalho & Rafael Felice Dias

as palavras
como espadas
do desejo

o fio das espadas
afiado
entre
quatro paredes

até que os corpos
encontrem
o corte
perfeito
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"antes
namorar queria
mataram o amor
agora
peleio para
de cinismo
não morrer"

Rafael Felice Dias
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"não se brinca mais
quando a carne e os nervos se foram
e a faca raspa o osso"

Paulo Becker
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"não há nada pior do que aquele que
usurpa a arte sem deixar um pedaço
de sua alma. a arte é troca.
eu lhe dou todo o meu sangue
e volto com um pouco de seu coração"

- C.Tugren
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sábado, 17 de janeiro de 2015

das máquinas...

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"os naturalistas mostram os homens 
como se mostrassem uma árvore a um transeunte. 
os realistas mostram os homens 
como se mostra uma  árvore a um jardineiro"
Bertold Brecht
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ex machina

o tempo é uma moldura
e navegar 
é viver nas superfícies.
na intensidade das coisas
é preciso ir mais
ao fundo
precisam-se
de verdadeiros
mergulhos
e de chuvas
torrenciais
e as ondas
e as ondas
sempre as ondas
investindo
contra o tempo:
o quadro é o mar aberto
.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

dos cruzamentos...

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"a poesia cruza a terra sozinha,
apóia sua voz no pesar do mundo
e nada pede nem sequer palavras.
chega de longe e sem hora, nunca avisa;
possui a chave da porta.
ao entrar sempre se detém a fitar-nos.
depois abre sua mão e nos entrega
uma flor ou um cascalho, algo secreto,
mas tão intenso que o coração palpita
demasiado veloz.
e despertamos."

Eugenio Montejo: "La poesia" / "A poesia": trad. Adriano Nunes




































a água da poesia sempre afoga meus olhos
porque o coração já transbordou faz tempo
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de um ponto a outro do trajeto rotineiro
a saudade passa a ser distância
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sanctum voraz

"voraz é a graça do teu nome
devora do homem
tripas
coração."
Vini Miranda

santificada é a vida
que quer ser vivida
e sempre ignorada por todos
sobrevive ao caos
cara é a alma de poeta
que de tão clara vive na escuridão
forte mesmo é esse corpo
que já pensou em desistir
em mais de mil e uma noites de insônia
nada mais falta
e apesar de tanto medo
a morte não será nunca o fim
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entretanto eu gosto dessas pessoas sem prática,
que pretendem ser engraçadas, e às vezes o conseguem.
para distraí-los deixo que se esvaziem.
o que me cansa é eles serem frívolos demais.
olhar alguma coisa, com gravidade, e por longo tempo,
eis um exercício grato, de que são incapazes.
também não apreciam o chão, fonte de tesouros.
tendo dois pés, só utilizam onde pisam.
não andam com o olhar ou as mãos.
não troco meus anos de poesia pela idade deles.

C.D.A. (adaptado)
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seria imprudente revelar o que penso de determinadas pessoas,
com meus carinhos cruéis e meus métodos de "enraivezamento".
talvez me expulsassem de suas casas.
talvez me fizessem bem.
talvez a mágoa acabasse indo a raiva na frente.
saindo pela porta da frente e a mágoa pela porta de trás.
trancando as portas.
e a casa limpa.
finalmente.
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de crianças:
- o que é a vida?
- a vida é o ar quando entra pelo nariz
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alguns de aço
já eu sou feito
de puro
abraço
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nada do que me digam
poderá deter minha ansiedade
pois está escrito em meu destino
que minha inquietude não cessará
e que no oculto buscarei sempre
minha felicidade
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primavera num espelho partido
verão num caco de vidro
nasce a árvore
a custa de muito calor
esse calor
igual a dor
de raízes
bem abaixo do chão
a dor são
raízes
e não árvores
estendem-se
docemente
como os poemas
mais melancólicos
que as dores passem
com a presença das árvores
troncos imensos
fortes
raízes miúdas
evitando arrastes
mas o que encanta
são as flores
dos galhos
mais altos
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poeta é preso em flagrante poema

"ausência
é
meu
estado
presente"
Elias Nasser

escrevo poemas
mas quando me insultam
recito palavrões
muitas vezes ignoro
os muros que
algumas pessoas constroem
finjo de morto
para ficar reto
não torto
tenho o riso represado
estancado pelo excesso
de faltas
"minha poesia é bipolar
ora com um sorriso no rosto
ora com uma pedra na mão"
tenho uma índole
nobre
mas um espírito forte
desses de dar chute
e murro em ponta de faca
aprendo atravessado
como aquela ponte
de quando eu era criança
até hoje
uma "pinguela"
atravesso devagar
ou quase sempre impetuoso
pulo sem olhar para trás
talvez me arrependa
talvez entenda
que os dias não envelhecem
e cada dia é para sempre
queria que alguns passados
sequer tivessem existido
mas insistentemente
o passado não embala
os adormecidos.
desperta-os
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este ano vai ser pior..
pior para quem estiver no meu caminho
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na minha insônia
até que os olhos se fechem
o problema é o cérebro
é ele que não dorme
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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

dos insípidos...

,
"o mundo anda temporário
e também temerário
parece que em tempos precários
os temperos mais acentuados
são o temor e o desamor"
Márcia Campos
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insípido

"o amor, só conheço de ida"
Vini Miranda

tenho mais dificuldades
que facilidades
por isso que minhas 
equações
são tão
irregulares
a soma
pode subtrair
e as divisões
se multiplicam
entre os meus
controversos
pessoais
por isso
tantos desgostos
com a matemática
e com algumas gentes
de despudor
incalculável
provocando
resultados
quase sempre
ridiculamente
nulos
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procura-se alma divertida
para relacionamento sério...
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sou da paz com um pé atrás!!
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"quem desdenha
quer comparar"
GriLo
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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

das altitudes...

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"preciso tomar cuidado com minha ironia. 
quando ela é apenas solta aos poucos e fragmentada, 
até que me divirto 
e balanço a cabeça daquele jeito como quem diz: 
- 'Ai ai... Cada uma...' 
mas quando interpreto 
e mantenho a linha do 'raciocínio ilógico', 
chego a me assustar com a capacidade de força 
que a cordinha frágil que entrego a algumas pessoas tem. 
decapita mesmo tendo a finura de um pelo de gato."
Damí Carlos
.

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tento um salto
mas não sei nem como são seus dias:
se são remotos, maremotos ou terremortos
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não tenho palavras
só resquícios de silêncios
elas acabam de me fugir
fiquei livre
de me significar
sou
página
tela em branco
repouso
em minha mudez
de poeta
todas as palavras
me habitam
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o desejo é vermelho

te olho na foto 
e o tempo se faz espaço
e eu avanço como a imaginação
dos deuses
em sua volta pressinto 
a matéria dourada
de seu corpo e o desejo compreende assim
que tudo permanece 
e o início
é apenas fábula de amor e eterna metamorfose
do sem igual destino dos nossos dias
em um mundo de amores em puro desterro
a luz se embriaga
de si mesma e cega
gira em torno da fábula do mundo
em você o mar sucede e o tempo se modifica 
em você o possível princípio de todos os mares
e o pecado lascivo dos deuses
o sexo dos anjos
a pornografia do desejo
que você diz ser alterada
não é a tara em si
é a vida entregue
como o desejo da beleza mortal não passageira
em você os corações apaixonados
buscam o elixir do mundo e toda vertigem
em você existe o sangue de uma possível rapsódia que goteja
sobre teus belos músculos
que imagino
tão perfeitos como a métrica de um artifíce
por você morreram vários poemas engavetados
dorme aqui em meu coração que se desmorona
querendo trazer de volta essas palavras fechadas
buscando em seus sentidos a obediência
à música etérea aonde cessa
todo caos e permanece o sonho
como um mito que não acaba
o amor que no sangue do poeta
se transforma e delira
a música 
que volta a povoar 
ruas e esquinas
dos futuros encontros
trazendo de volta o gozo
tão raro
da pele e da fala que 
se pretende 
a sede e o raio que não cessa
é a glória
do sonho e todo o mundo – todo beijo caído
como pétala o desejo do encosto da boca sobre seu sacro púbis -
nos fala de que tudo retorna e o mesmo
amor é apenas saga 
e profecia do poeta
que sem prever o futuro
se cala
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um lado cínico
ou um 
quadro clínico?
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eu não sou só essa hora triste 
que algumas vezes me acompanha
eu não sou senão 
uma de minhas várias palavras enclausuradas
eu sou apenas uma dessas palavras 
ante meus poemas
eu me resguardei
nessas palavras, horas, 
poemas e prisões
as minhas alegrias,
poucas,
tem o peso
das pedras
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