quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

das luzes...

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"prefiro aguardar a esperar. a espera é lenta,
tem um objeto específico, que provavelmente demora a chegar,
atrasa e nos deixa nervosos, raivosos e inseguros.
já aguardar, não. aguarda-se sem saber o quê.
aguarda-se porque a vida passa, porque houve o passado
e haverá o inesperado, ou melhor, o inaguardado,
o que não se guardou que ocorrerá e, quando menos se aguarda,
surpresa, ele vem e o aguardante se desguarnece
e recebe o acontecimento com acolhimento e vontade.
já o esperador, coitado, quando vem o que se esperava,
baixa os ombros e se conforma, triste, que a coisa chegou,
mas atrasada."




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fui talhado para a madeira
e o desarranjo dos metais
e me incomoda 
quando toda espera é lenta
por dentro de mim todas as casas são lentas
a proximidade das ruas
me lembra a velocidade do tempo
ágil
incerto
impreciso
tenho manias de me afastar das distâncias
o que é próximo
me causa encontros
dos mais difíceis
(adaptar-se ao tempo é coisa rara)
possuo nódulos com raízes várias
se estendendo 
e produzindo frutos
e flores
mais raras ainda
não me tragam ansiedades
eu me perco
e fecho os olhos dos pássaros
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houve ainda durante certa noite
o sexo desavisado
com meu nariz
escorrendo lágrimas
ainda tenho lembranças de outro
não me sinto inteiro
recomeçar não é como substituir
e as águas pesam
me desfiz
e não me aconteço inteiro
de novo
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sou afetivo
esperando um grande amor
como consequência
mas há tão poucas chances
que finjo desapego
finjo não me importar com os afetos
mas que como magma quente
grudam por dentro
inevitavelmente
não escapo
de minhas
intenções
finjo de novo
resguardando na espera
o ato da paixão
inesperada
dispersada
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o adubo do não-escrito
me faz criar
a poesia perdida
nas entrelinhas
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a imaginação está cheia de gavetas vazias
e meu coração cheio de lugares vagos
preencho o coração com poesia
diminuindo
os vazios
largos
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poesia numa página
é uma vida humana
sendo recolhida
na ponta dos olhos



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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

das temporalidades...

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"é triste explicar um poema. 
é inútil também. 
um poema não se explica. 
é como um soco. 
e, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. 
um soco certamente te acorda e, se for em cheio, 
faz cair tua máscara, essa frívola, repugnante, 
empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar. 
se pelo menos um amante da poesia foi atingido 
e levantou de cara limpa 
depois de ler minhas esbraseadas evidências líricas, 
escreva, apenas isso: 
fui atingido. 
e aí sim vou beber, 
porque há de ser festa aquilo que na Terra me pareceu exílio: 
o ofício de poeta."

Hilda Hilst
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enquanto desvaneço
mantenho os olhos bem abertos
enquanto desvaneço
mantenho o coração aparente
enquanto desvaneço 
perco braços 
pernas
tronco
membros
e a flor da pele renasce
enquanto desvaneço 
espero
um outro
passo
uma contra dança 
algo
que
me
ultrapasse
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leves
as árvores
desfilam
frutos
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sou carvalho 
para rachar é fácil
árvores bastam 
machados
ferreiras (o outro)
mas sem perder
raízes
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eu quero
o tempo
visto
como um
afeto
eu quero
estar
lendo 
o tempo
de olhos
fechados
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os voos
que a cidade dá
durante a noite
são ocupados
por pássaros
noturnos
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"E tudo que não diz
é como se dissesse"
Marco Lucchesi

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para certos amores
ame-os ou deite-os

para outros amores
chame-os ou deixe-os
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e temo a cada
passo
o encontro do que
não sei

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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

das teias...

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"necessito de um ser, um ser humano 
que me envolva de ser 
contra o não ser universal, arcano 
impossível de ler 

à luz da lua que ressarce o dano 
cruel de adormecer 
a sós, à noite, ao pé do desumano 
desejo de morrer. 

necessito de um ser, de seu abraço 
escuro e palpitante 
necessito de um ser dormente e lasso 

contra meu ser arfante: 
necessito de um ser sendo ao meu lado 
um ser profundo e aberto, um ser amado."

Mário Faustino
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teia




























eu escrevo coisas como quem apodrece
antes que a palavra derreta
antes que as ideias virem fumaça
eu escrevo durante os incêndios
eu escrevo durante os desterros
os desertos
as faltas das ilusões
eu escrevo diante das coincidências
eu escrevo antes depois durante
os poemas que virão
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pessoas 
que olham
com os mesmos olhos
de duas formas 
diferentes
ao mesmo tempo
que parecem
assassinar
entendem
com outros olhos
um outro modo
de gostar
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toda dor é ridícula 
toda paixão é ridícula 
toda razão é ridícula 
toda
coisa
(só não o amor)
é ridícula
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

das ingenuidades...

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"paga a realidade com sonhos"
Adolfo Montejo Navas
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Daniel Bilac









































o amor vai 
do essencial 
para o emergencial
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fingimos ser ingênuos para descansar dos chatos
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eu não sou
e nem possuo
o que posso
quando a noite 
cai
o tempo no escuro
não amadurece 
o cedo persiste 
até que no dia amadureçam
todas as coisas
em excesso
vulgares 
sexuais
e interditas
até que a lua
nos 
separe
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a verdade
come 
no meio dos vazios
da mentira
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o cheiro da pele
não se reparte
por isso a dificuldade
de tantos corpos
ardentes
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quando a noite se abre
o corpo
perdura mais uma vez
no colchão 
fundem-se no humor
irônico 
da escuridão 
aqueles pensamentos
seguindo um traço confuso
triunfos 
desejos
deserções 
desertos
o escuro é bem deserto
a gente tem que pensar 
oásis 
antes do dia seguinte
e antes que os pássaros 
evaporem
do céu 
pela 
manhã
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geometria:
lâmina sob a lua
o raio de uma estrela
corta
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pessoas que são ecos
o que não ecoa
foge
aquilo que ecoa
é aquilo que se fixa
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memória fraca
funciona bem
com poesia
forte
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se eu fingir 
tão completamente 
eu me perco 
os meus poucos olhos 
me revelam
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o meu tempo 
é como um pêndulo 
de oceanos
um grão só de areia
atravessa cada segundo
as horas
ostras
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o que restará das diferenças 
se a palavra de ordem
é forjar?
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a repetição 
se apropria 
do meu cansaço
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o Amor eu repito
como uma distância 
ao contrário 
se reverte em Roma
longe
igual
o Amor
de
mim
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somos cópias 
referências do que sabemos 
e reconhecemos 
fazemos clichês aos milhares
vendemos a mesma ideia
simultaneamente 
com permanente
disfarce
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as referências 
nos transformam
no que somos
cadeia dna vírus 
bactérias vida vital
é entender o todo
encadeando-se emparelhados
e nunca conseguir
dar um basta
o que é único 
esse modo exclusivo
um dia desaparece
sem deixar sinal 
ou nenhum
rastro
nem mesmo a memória 
se dá conta
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como poeta
minto nas histórias 
sem julgo
sem juízo 
para os outros
o fim é o começo 
mas eu não sigo
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monumento
vidraça 
aos cacos 
viro
ruína
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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

dos arquivos...

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"entre estes meus amigos através
de cujos corações arde o horizonte e a ponte
da qual o seu sorriso era um dos arcos
abriram-se saudades."
Julio Carvalho - Adaptado de Luis Miguel Nava
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o eu é onírico 
o outro
é químico
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cobras se acomodam
águias esperam a hora de atacar
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ergo esse respingo de vinho
à vossa saúde 
ergo essa parte de vosso corpo
e bebo-lhe a lágrima
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memorial da entrega

pontos entre pontes
de exclamação 
quem tem um caminho reto
não se mete em atalhos
(exceto eu)
de teimoso tenho a vida
repleta de descaminhos
e poesia
e lágrimas 
e todos os meus silêncios 
são catalogados 
como abusos 
e dobras de pele
que com o passar dos anos
começaram a habitar
meus espelhos
e desordenadamente
vivo
amparando
reflexos
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de tanto ficar sozinho
dispensou as palavras
- agora orquestra
o silêncio
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mantenha a luz própria 
mesmo que a 
eletri
cidade
seja
estática
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no desprezo
a palavra mais 
comentada
é o silêncio
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mudar o endereço de gente é fácil 
mudar o jeito de gente não 
dar livramento de corpo
e limpeza de alma
é coisa muito impossível 
a não ser que se mude o chão
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o amor é cego
e tem vezes
que não me vê
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lá na porta de casa
o amor é mudo
nada entende 
aqueles portões 
de ferro
nem um grito
por isso 
é feito
silêncio 
só responde
forjado
a fogo
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para ter sentimento 
é preciso ter estômago e engolir pregos 
correr o risco
de desentender 
todos os gostos 
e do amargo
aprender 
a tirar
espinhos
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uma dor é uma pura pergunta
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fazer um dicionário de poesia
para pessoas que dizem absurdos
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já reparou que nenhum som é tão forte 
quanto um relógio no escuro?
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a vida é uma sucessão 
de enterrar e desenterrar 
coisas 
como um infinito
que existe na água 
corrente
e sua necessidade 
de encontrar 
o tamanho adequado 
a cada tipo
de solidão 
enterrar à lápis 
desenterrar
com uma tinta
possível 
de se escrever 
sobre o branco do dia
com a ponta negra
da noite
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queria um coração 
com seguro 
contra incêndios
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quero o amor como consequência 
e que seja visto antes mesmo
de chegar
bem perto
quero amor como sementes 
como nuvens
cada temporal
como um pequeno ensaio 
do fim do mundo
quero amor como um sentimento 
que engole todos os outros
quero o amor como a primeira pele
e a segunda
como alma
inaugurada
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a verdade me serve 
até a hora 
que vou ao banheiro
- e não tem volta
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as rugas 
são as cicatrizes aparentes 
nos espelhos
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o amor é cego
e tem vezes
que não me vê
................................................................

tem o olho maior que a barriga 
e às vezes vomita ilusões
e sonhos de toda uma vida
a base de olhares
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antes que seja tarde
olhar-se
bem de perto 
até que as veias
respondam ao sangue
e o corpo volte
à vida
responder à vida
ainda que ela não seja
uma
eternidade
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o amor 
vive suspenso por um fio
a solidão 
por um hiato
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o rosto
é o espelho do corpo 
a alma não tem outro reflexo
e quando o corpo decai
reflete
displicentemente
na cara
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retratos falhados
de rostos cansados
e pedras
pensadas em si
como primeira obrigação 
de todo dia:
ressuscitar
a noite adquiriu um hábito 
de deixar os óculos 
debaixo do ventilador
esperando
o vento limpar
o olhar na manhã seguinte
e sempre
salta por cima dos medos 
sem atravessá-los
- só medos impossíveis são 
agarrados à unha e dentes
entrega os minutos enterrados 
nas pálpebras do tempo
talvez esperando que um dia
deem frutos
fez do coração um mapa
porque sempre se perde
em toda paixão absurda:
a única coisa que aprendeu 
foi sobre 
distâncias 
e saudades
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meus temperos
são amargos
e entre aspas
porque o veneno
ruim
fica longe
das almas
com 
gosto
bom
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alguns capítulos incompletos 
onde não cito
ninguém famoso
onde não existem
cotações 
nem pretendo oferecer
profecias
na poesia
não existe lugar
vulgar
eu sempre entendo as palavras
com olhar
enviesado 
de caçador
................

Marin Sorescu











































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dos alentos...

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"entre a palavra e o silêncio
um hiato de desejo
desatina"
Rita Medusa
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Foto de Hugo Mulatiere





























alento
é coisa
de quem não vê direito
alento
é coisa
de quem só vê 
por dentro
e segura sua mão
quando mais o tempo
vira
quando mais o tempo voa
quando mais o tempo assusta
quando um pássaro
se perde
alento
se pede
uma mão sobre a outra
uma mão lava a alma da outra
alento
é um silêncio
que mesmo que não se diga nada
faz um bem 
imenso
.................................................................

eu sou um idiota tentando
entender
as tramas
da vida
quando
a espera
surge
resumindo
e resolvendo
tudo

sou de ânsias
não sei
acordar relógios
..........................

vida de poeta:

desespero
acompanhado 
de alegrias 
(mínimas)

todo o resto
cabe na poesia