sábado, 30 de agosto de 2014

dos refúgios...

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"cheguei às minhas inseguranças definitivas
aqui começa o território
onde é possível queimar todos os finais
e criar o próprio abismo
para adentrar desaparecendo"
Roberto Juarroz
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ao pé da letra
nem o amor
perdoa
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mão fechada
o mito do nada
encerrado
só ficou a palavra
esse corpo em direção
a tudo
e desse corpo
(desse mesmo)
de mim é difícil sair
emparedaram-me 
com um muro
que se estende somente
ao nunca jamais
estipularam-me duração para morrer
atam-me às veias de um organismo
quase cego
que me aspira e expira sem parar
enquanto isso
por onde anda
o coração?
......................................................................

parte poética

crescer 
na palavra
incendiar-se
na liberdade
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perdi o medo da palavra
medo de coisas maiores
do tipo refúgios
que podem ser armadilhas
e armadilhas
que podem ser
refúgios
o pré requisito do medo
é o espanto
um além mar
praia-que-virou-ilha
todo medo
tem um mínimo 
e um máximo
o medo
saiu do casulo
abre um buraco no chão
e vai crescendo
a multidão
vai nascendo e se torna
um excesso de vertigem
o medo faz esse jogo
de fogo aceso 
até virar cinzas
deixo o silêncio
resolver
o desencanto
(ou o desenlace?)
dos medos
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dos lamentos...

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"deveria, 
embora que como criança atentada 
vá provocando por aí os sentidos das coisas 
até cutucar no corpo das coisas 
para dizer "isto é isto"
Mariano Raffaelli
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objetos de solidão

às vezes
cresce sob meus olhos 
uma claridade assustada
no meio das coisas 
que vou amando
e de outras que me doem
montanhas de pensamentos
luas que me alcançam
algumas vezes
em certas noites
no meio das coisas
existe um dia que é meu
no princípio do mundo
em que sou o poeta 
na presença dessas 
montanhas
e luas submersas
sonhos secretos
ruas de loucura
olhos esquecidos
mar sem medo aberto
no céu do estilo
vejo algum bar
e ouço palavras
que giram no frio 
ou na garoa do muro
e encontro
meu tempo de lugares 
e deslizes
luares de noites entreabertas
ternura e fúria
sob os meus pés
.......................................................................

dizem que perdi a razão
por me deitar com o meu nome 
sobre os pés 
como um gato
escondendo garras
pelo perigo iminente
de ferir alguém
por me cobrir com as folhas rejeitadas pelo outono
por cantar com a língua nos dentes
por separar o lado direito do lado esquerdo
por fazer do meu corpo uma fábrica de silêncios
por não ver do lado ao lado seguinte
por ver por fora 
as pessoas por dentro
eu perdi a razão
sem nenhum lamento
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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

dos princípios...

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"porque o mar na maré não tem como retornar?"
(more than this)
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"tape" by Julio Carvalho
























































no principio
eu guardava
o verbo amar
debaixo de muita
gramática
por cuidado ou algum medo
de desbotá-lo
ao deixá-lo
vir a luz
sempre vi
a palavra sombra
como luz suficiente
para proteger o amor
mas mesmo assim
ele se anunciava
(amor)
pelos crepúsculos
pelas noites sem sono
pelos pensamentos desocupados
pelas manhãs
passando por cima dos muros
pelas dores que doíam
por dentro do corpo
assim esses amores trincados
iam sendo colados
debaixo das sombras
e o tempo
cuidava de retirar-lhe
as fronteiras
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em azul

poesia
pois é
ar:
respiro

poesia 
pois é
lugar:
inspiro

poesia
pois é 
estar:
delírio
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na tela 
a palavra é escrita com silêncio
há essa coisa que sai de dentro da pele
vai aos ouvidos
e fala
na tela se canta para os olhos
a virtude da tela é estar sempre pronta 
para não se ser vista
mas
eis que vira traço
vira e-mail vira coisa vira poema
vira cabimento para ideia
uma tela vazia só pode ter nascido de um acidente
o sujeito deve ter pensado em não esquecer 
e sem pretensão
inventou um guardador de pensamentos modernizador
as linhas retas das telas 
servem para que os pensamentos soltos ali 
não fiquem tortos
escrevo feito rabisco fora da linha só pra sentir
um pouco de liberdade na ponta dos dedos
tela em branco tem medo de vazio
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cortar a hermeticidade do outro 
com um abridor de datas 
descobrir um ser incomum
uma vontade pura
sem contaminação
um modo difícil
de explorar
o ser:
uma forma aguda
de penetrar
a lata 
do invisível
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o travesseiro é a base para o sonho
uns são de penas
alguns de papelão
tantos de algodão
outros respiram
muitas vezes
sempre o mesmo travesseiro
nem o sono:
só os sonhos mudam
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mesmo não funcionando
o amor é um bonito
objeto
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a diferença da paz entre o pensar e o estar
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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

dos diamantes...

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"há tijolo
há quem faça dele muro
há quem faça dele ponte"

do respiro das coisas - Ebbios
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eu não sou 
o que alguém sonha 
que eu seja
porque nem eu mesmo 
acabei de todo
de acordar 
de mim
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de tanto absorver
o nada
acabei me deparando
com o invisível
um jogo faltando um pedaço
um escuro que ilumina
de visita 
avista breve
agora todos
os lugares são sombras de silêncio
quem sabe 
o que absorvi de lembranças
nessas transparências
ausências de estações
acabaram-se os segredos
em um feriado dos olhos?
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meu coração é uma granada
de mão em mão
pronta para a explosão
imediata
meu coração é uma granada
já sem pino
arma letal
como um revólver sem trava
mortal
já se esvaindo em palavras
antes do sangue
coagulado de tantas batalhas
com cheiro de revolução
não se contenta 
com uma paz qualquer
vermelho por definição
quer ainda alcançar 
de algum jeito
pessoas
cidades
os batalhões
as multidões
meu coração é uma granada
a ponto de explodir
várias vezes ao dia
de raiva
dor
ou alegria

sem explorar
meu coração
implode
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insônia
espalhada 
no escuro:
mil e uma noites
entre quatro
estações
as paredes
são um quarto
de luz
de lua minguante
me atravessando
definitivamente
acordado
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domingo, 24 de agosto de 2014

das tensões...

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"nem sempre procuro a morte
mas sempre corro algum risco"
Fabrício Corsaletti
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tenso
perdi dois dentes
e quebrei vários outros
dissecando minha sombra
medos e neuroses
ansiedades violentas
maiores que o desdobramento
de qualquer ódio
ou revolta
a trilha sonora dos dentes
rangendo
e do coração acelerado
batendo
eu tenho uma vida
traduzida
dentro da boca
e na falta 
dos olhos
nas unhas roídas das mãos
nas unhas manchadas dos pés
no sangue marcado 
por dentro
em cada pílula
nos vários medicamentos
minha vida feita em frangalhos
como resposta do corpo
soma
adiciona
aumenta
e cada dia é uma cilada
um cuidado 
com qualquer movimento
assim me reparto em extremos
continuo a vida
mesmo quando não entendo
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como tantos poemas que faço
sumiu o último que escrevi
outros nem somem
eu os adio
certo de que jamais os farei
causa certa melancolia
da impossibilidade
da reconstrução
em um instante apenas
uma estranha sensação 
de perda de peso
quando o poema
desaparece
da memória
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paquidermes:
tudo o que não 
conseguimos
engolir
(bem maiores que os sapos)
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o tempo derrete na boca
quando é doce
o tempo é âncora quando existe o desejo
o tempo não suporta ânsias
nunca se acalma
nas esperas
transforma todo relógio
numa perigosa arma
tic tac
um estampido
um tiro
direto no peito
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quando eu morrer
queime meu corpo
com o fogo da palavra
e quando eu for só cinzas
me amarre numa folha
com um poema dentro
assim 
quando eu for apenas
uma lembrança distante
me assopre
para bem longe
da memória
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todo poema deveria ser
de fogo 
queimasse os pelos
tatuasse a pele
atravessasse feito flecha
o coração
queimado como fogueira
e convidasse os pés
a caminhar sobre as cinzas
como se andasse
sobre folhas e escombros
com o cuidado de entrelaçar
fogo, coração e cinzas
num encontro impossível:
poesia
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zelosamente
criou um poema 
dentro de uma garrafa
como se fosse vida
mas à  noite
quer se soltar
ele borbulha
hoje à noite por exemplo
por pouco não esqueceu
e num momento sem lei
ele quase saiu 
absorvendo tudo
o que foi produzido
durante o dia
se escapa
esmorece a sombra
dos outros poemas
que ficam sepultados
vivos
juntos com suas 
esperanças
..................................................................................

cadafalso

desconhecia a extensão do mundo
palavras mínimas não explicavam minha descrença na esperança
possuía oculto até o que não sabia dizer
trazia de cor e decifradas algumas palavras:
aturdido
suspeito
profundo
deserto
promessa
solidão
e um amor condenado a minguar pelo exílio
queria conhecer mais palavras para nomear o incômodo perpétuo instalado pela dor
a vida com todas essas dúvidas
se torna por demais demorada
vem um cansaço
(viver fica entre parênteses)
aí vem a paciência com tudo
a paciência aconchega a alma 
e adormece a dor
uma calma
mesmo falsa
como
alento
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quinta-feira, 21 de agosto de 2014

das lições...

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"a boca da noite
avançou na lua cheia
um quarto minguante"
Sugestão - Oldegar Franco Vieira
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Time is the best teacher; unfortunately, it kills all itsstudents".Hector Berlioz 




























as coisas acontecem simplesmente
sem muito cuidado
nós é que quando queremos
lhe damos nome e significado

como duas palavras que se encontram
uma dita
outra calada
se fundem em algum instante
se orientam
e procuram
desesperadamente
um motivo
um nome

e nem sempre nomes e coisas
significam
muitas vezes
apenas
são
.........................................................................

a vida
um par de asas
o voo
pela frente
inexplicável
pelas costas sorriem
inesgotável
piada
o passado
um fio
um fato
um nome
quando a alegria
acontece
sob as asas
vem sempre atrasada
ou talvez sejam as asas
e a felicidade
esteja
parada
.........................................................................

sou pai
filho
e espírito de poesia

suspeito
e profano
não sou o santo
que qualquer rima pede
sou a serpente
do paraíso
irremediavelmente
perdido
na loucura

sou o deus
perpétuo
do poema
em chamas
.........................................................................

nenhum afago
apaga o fogo
incêndio eterno
dentro
até que algum dia
as águas 
de outro
lágrimas ou não
até suor serve
se alinhando
disfarçado
tenha expulsado
levemente
todo o fogo
e que fique
o carbono
preto escuro
dessa alma
apagada
transformada
em diamante
.........................................................................

movimento
precário
esse nosso atual
momento
literário
antes os versos
revolucionavam o tempo
caligradesafiavam
penas na euforia do silêncio
hoje os poemas são paridos
atirando páginas
aos porcos
até as latrinas e os becos 
os recusam
são partituras
de imagens
mortas
.........................................................................

são sempre esses
seis pequenos medos
em certos instantes de solidão
nesses momentos
não me espera -
senta lá fora
e fica olhando o céu
estrelas atravessando a retina
iluminando as feridas abertas
aqui dentro
eu fantoche do absurdo
cabeça vazia e peito cheio
sempre em desacordo com tudo
nessa ansiedade domada
mediada por medicamentos
olhando as palavras
no mesmo verbo
não versando nada
não há flores neste asfalto
e a poesia em mim
faz falta
qualquer dia desses
num desses instantes
desapareço
em puro riso
e a solidão
que se dane
enquanto
me calo
.........................................................................

os poetas inventam coisas
onde não existem palavras
guarda-chuvas viram flores
um primeiro encontro
vira paixão
um segundo já é casamento
tamanhas são as intensidades
e o gozo e o tezão
um poeta vê o mundo
não como deve ser
mas como o mundo deve
ao poeta 
o mundo nunca paga
o que deve ao poeta
então ele inventa
outra palavra
para apagar
o que o mundo estraga
para consertar
desilusão
.........................................................................

somos feitos de água
lágrimas
e muito ar entre
esses sorrisos
que nos escapam
entre
essas
felicidades raras
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dos talvezes...

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“A solidão é atemporal. 
Um momento de solidão ou de medo 
pode encharcar a vida toda. 
Por isso é preciso, pela infância, pelos amigos, 
pelo encontro e pela vida, poder oferecer uma fogueira na noite...” 
(H Pellegrino)
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tempo de espalhar pedras
para colher diamantes
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poesia
poesia faço
faço poesia
na tentativa
de não virar
puro esquecimento
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entre a cruz e a espada
eu vivo 
de mãos atadas
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toda alma
pesa
demais
mas a alma que se apega a outra
pesa muito mais
......................................................................

paixão e pólen
duas coisas
ao vento
......................................................................

o ideal da calma
é o pó flutuando
num feixe de luz
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enxergo menos
na certeza
de poder enxergar
o mais importante
e acabar de vez 
com essa sinfonia dos
talvezes
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das margens...

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"É impossível dimensionar o novo sem traumas. 
Sempre que passamos por uma crise, 
a dor e a confusão decorrem da falta de estrutura lógica 
e tradicionalmente configurada para lidarmos 
com uma situação inusitada que, na verdade, 
desafia a acomodação das nossas percepções. 
Assim, o trauma é uma ruptura que, inclusive, pode nos levar além.
Ele não apenas redimensiona nossas vivências 
como a leva a novas perspectivas. 
O novo, então, é a troca de pele da cobra, 
a borboleta que alça voo sobre a carcaça da lagarta. 
Viver significa claudicar, porque toda cura pressupõe cicatrizes."
Antropólogo André
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branco branco branco




























à margem do erro

eu poeta dificilmente me reconcilio com o real.
dentre tantos tipos sou um dos que
mais usam a poesia 
como uma porta 
um encouraçado
uma barricada
a sensação de saciedade me é estranha
desconheço
sei de ansiedades
essas que me conduzem ao poema
quase um desespero de ser 
entre os escombros dispersos 
do tudo que se partiu
............................................................................

hora de pecado e ironia
não se desprezam as horas
de cinismo absoluto
tais momentos de se
alimentarem serpentes
e cuidar do lobo
em direção à maçã
envenenada
concentrar o pensamento
nas pequenas criaturas vivas
inúteis
criando um gosto de sangue
em tempo do veneno
escorrer entre os dentes
dividido entre o inferno e os outros
quando tantas vezes 
a vontade
acontece dessa forma 
por causa de estigmas
segregações
segredos
transgressões clandestinas
alívios íntimos inúteis
sexualidades implícitas
e fracassos meus e dos outros 
que permeiam tramas perversas
irreversíveis
............................................................................

mal abro os olhos
os vultos vem voando
recentes
imediatamente
ressentidos
e ansiosos
conduzindo
meu não sentido
se encostam
e leves
quase oprimem
a paisagem
onipresentes
não me deixam
até quando
mal fecho os olhos
............................................................................

meus óculos ficaram cegos
meus sapatos desanimados
e já sem nenhuma companhia
quase hoje minhas roupas sairam
eu pele inquieta
aprendendo a ler
nas sombras
metade dos olhos fechados
outra metade em pânico
a parceria entre dois mundos
distintos
e a luz
fosse dia
(explode)
fosse noite
(esconde)
no entanto
por dentro
o silêncio
é a última coisa que habita
nem luz partida
nem meia luz
mas a luz de uma vida
inteira
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