quarta-feira, 27 de julho de 2016

dos obscuros...

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"como pedra do céu na terra, um dia,
um verso condenado caiu, 
sem pai, sem lar
inexorável – a invenção da poesia
não pode ser mudada, 
e ninguém a irá julgar"

Óssip Mandelstam
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by @mirnagarcia
































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o poema se impõe supremo
entre as linhas
no lugar das horas
o poema se impõe supremo
entre o olhos
entre as folhas
entre os dias
o poema se impõe supremo
entre as raízes
o poema se verte
no azul das flores
em frutos

para Vini Miranda

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Davi Kinski 






















quadrilátero
poético
em
movimento
abrupto
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sou o filho do meio
o antes natimorto
por isso
não me meto
em
política
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um corpo me é dado
– e com que fim
com defeito
meu olhar não olha
direito
meu corpo único
tão de mim
tão por dentro
minha ansiedade
de respirar
silenciada
por medicamentos
sou enfermeiro
e cuidador
cativo
na prisão do mundo
não vivo
sozinho
já nos idos da eternidade
que não acredito
ser tão sincera
sai meu calor
meu sopro respirado
agora
nela se grava meu poema
agora
irreconhecível
de tão recente
agora
ocorre num momento
de lágrima turva
um poema armado
que não resiste
à chuva
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a ira

minha ira
minha fera
quem ousa
olhando nos meus olhos
com a dor
colar e coluna de vértebras
raras
com tantos cortes
e sangue
cinco décadas
que jorram na garganta
das coisas
treme o corpo
espinha ereta
surto à beira de horas novas
tudo tem que ser
enquanto a vida avança
e nessa cabeça
em cadeias ocultas
de ideias
em torno
arrebenta uma onda
uma qualquer pessoa
incômoda
e a vida se parte
cartilagem frágil
ecoam as iras
a idade da Terra naquele
instante
é falha
junto às partes
tortuosas dos dias
soa o fluxo do sangue
e o mundo está aberto
termina uma onda
e vem outra
a ira em corpo aberto
angústia
a onda de novo oscila
batida pelo vento das décadas
e a víbora por dentro
respira
e perde a sua
medida
depois volta atrás
riso absurdo
e descobre o alívio
do surto
exposto
no meio dos rastros
do próprio sangue
pisado
e no meio dos restos
as pegadas
dos seus próprios
passos
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insônia
homens
velas rijas
naves
contei a longa fila
até a metade
barcos em bando
nos sonhos
revoadas de aves
que se elevaram
acima
do sono
sobre a fronte
cai a espera do dia
para onde vou?
mover o corpo
de olho amanhecido
alguém vai saber?
o sol
fagulha
ao
amanhecer
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olhos desmesurados
no
infinito
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contravenção

ao perder as âncoras
derivo e
na

vi
da
se
as
co
rr
en
te
s
me
levam
ou me prendem
ao
fundo

com  Pínkálŝkỳ Gúílhérmé.
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"reparem: todo homem-imóvel 
mantém inalterável o seu sorriso particular"

Mario Bellatin
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meu poema não tem óculos
é invisível a olho nu
nuas são as palavras
despidas de luz
são obrigadas a se orientar
a cada passo-a-passo
até o poema
acabar
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andar olhando
para baixo
rodear o chão
um cão inseguro
onde se vê no ondear
o som de palavras
errantes
dar-me sombra
o bastante
para que sobre palavra
entre um
meio-dia
meia-noite
meia-vida
meio olhar
o quanto eu precisar dividir
o quanto eu puder
enxergar
o poema
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patas
de lobo
ou de homem
doem
se não
acústicas
ou macias
ao olhar
lírico
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olho redondo entre as palavras
pálpebras para cima
forçando o olhar
íris aquática
sem modos insiste
sob o céu
construir
um poema
inclinada
íris fumegante
limalha
até a palavra arde
no sentido da luz
cruza até a alma
não é estranho
todos sob o mesmo céu
e o meu poema cego?
o poema acontece assim
aos poucos na luz
em pequenos
silêncios
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toque de recolher
espinhos
quase palavras
algumas vezes doem
em mãos delicadas
pela destreza
não pela inexperiência
mãos hábeis
que tem delicadeza
e sabem
qualquer dor
antes de
merecer
então pode deter-se
enquanto
tudo
lhe escapa
fosse até na minha morte
sempre assim
eu
renasceria
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trago para o corpo
uma marca que nunca
engana
escrita-espalhada
plana
um coração
contra o corpo
lentamente
rola para fora
escala
escala
pelo dia pelo outro pela noite
por precisar de estrelas
perguntando
por alguém
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em mim
tudo o que escrevo
com um olho
aprofunda-se
no outro
os anos
as palavras desde então
tem sido mínimas
menores que antes
mas o espaço é infinito
esse que toma forma
dentro de mim
então
não preciso olhar
para fora
o ilhar-em-mim
me
acorda
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poema de demora
mudo os aromas de lugar
o mal me quer
intacto
que passe longe
entre lar e abismo
de memória
casa abandonada
em ruínas
esse estranho abandono
se alguém ficasse
teria o mundo
quase
sobrevivido
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evocação

ninguém nos molda de novo
com terra e barro de onde
viemos
ninguém evoca o nosso pó
ninguém
conhece onde
florescemos
e as dúzias de flores
dos túmulos futuros
sempre queremos florescer
rumo à algum
encontro
um nada quando estamos sós
rosa de nada
flor de ninguém
com estame de céu
procurando
no silêncio da chuva
uma palavra púrpura
que alcançamos
num poema
sem
espinhos
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arrancar a própria
verdade
que estre pessoas
surge
em meio
à um turbilhão
de memórias
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"que tempos são estes
em que uma conversa
é quase um crime
por incluir
o já explícito? "

Paul Celan
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‪#‎dialogos‬

virou pó e nuvem
seja um quase
um entreposto
porque algum dia
vou querer
conhecer
seu
rosto
meu rosto não tem mistério
ou segredo
mas sou sombrio
des afio
des vario
de pessoa
para pessoa
quando
tudo
está
complicado
e quando estará
tudo bem?
quando tudo melhorar
tudo é coisa demais
perto de tudo já me satisfaz
quando deixar de ser longe?
quando o perto for suficiente
moro com gente
mas moro sozinho
abismos aumentaram
e se tornaram intransponíveis
os elos se romperam
deixando frascos
vazios
eu tenho líquidos e litros
de poesia
para encherem frascos
vazios
com vertentes
e cola
quente
vidro rachado cortante
eu colo
mudo seu jeito
sem te julgar
sem colocar
defeito
quero ver seus desenhos
e te levar rabiscos
então tem que ser rápido
quero queimá-los
então vamos nos ver ontem?
é o mais rápido que consigo
ontem ainda machuca um tanto
não quero voltar
então vamos nos ver hoje?
hoje sempre dói menos
porque ainda não aconteceu
vamos em breve
não ando conseguindo me comprometer
um quase
um entreposto
perdido
sou distraído
por isso as asas
e você perdido
voe
comigo

com Pínkálŝkỳ Gúílhérmé.

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eu me recomendo
mais como
argumento
do que como
pessoa
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"não se iluda
a paixão jamais obtém o perdão
tampouco o perdoo eu
que só vivo de paixão"


A Chiaromonte - Pier Paolo Pasolini

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seja um quase
um entreposto
porque algum dia
vou querer
conhecer
seu
rosto
entender
seu gosto
para me
multiplicar
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eu sou a síntese
do concreto
armado
mesmo quando
desamado
pois
amado
sou de areia
no
chão
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eu preciso da música
e da poesia
para não ficar a sós
com meus pensamentos
eles podem me matar
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deslocamentos



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"assistindo a chuva cair
o café esfumaçar
a alma diminuir
a vida passar"

 Eduardo Baulhouth
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em um primeiro instante
alguma confusão surgiu
a corrida começa a tempo
antes do pensamento da pessoa
se recompor
alguns com
sons de sentença de morte
eu prefiro no alto
me dependurar
para assistir
tão alto lá em cima
um ar perdido
e cansado
ouço uivos de lobos
no sentido horário
me cobre
e descasca
as limalhas do tempo
em um pacote pronto para servir
agora eu volto
para a realidade
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"eu quis te contar da eternidade 
no exato momento em que aconteceu. 
mas preferi não arriscar. 
aprendi que até uma palavra, 
por mais delicada que seja, 
é capaz de rasgar o finíssimo véu do inesquecível 
enquanto o encanto se faz. 
o sutil é sempre compartilhado em silêncio.

(Mas como nem só de sutileza é feito o homem)"

Memória da Bananeira / Isadora Krieger
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o vento na cidade
não se vê na cidade
nenhuma pessoa com nome
nenhuma identidade revelada
nenhum nome aparente
gente com nome ausente
atrás de corpos identificados
é anônima a cidade
os lugares
como as ruas
seus carros com placas
e endereços
anotados
as pessoas não
são papel em branco
de peles distintas
é como uma grande avenida
sem marcas ou indicações
a mulher que anda
na calçada
não sabe de nada
do músico tocando flauta
no metrô
de madrugada
contudo há na cidade
oculta fisionomia
como no curso de toda vida
uma possível melodia
ou quando vista de cima
a paisagem se organiza
há finos desenhos expressos
por trás de tanto cinza
o vento na cidade
pouco notado sob o sol
seu tecido de fumaça
faz-se invisível lençol
quando se encontra
uma árvore viva
uma alma qualquer
bem-vinda
como uma luz que se acende
algum rosto que refresca
então não lembra a cidade
as suas ruas vazias
não se olha a fumaça
nenhum barulho
se ouvia
são muito próximas
as simetrias
desses rostos
e dessa cidade
gente boa
gente ruim
mas nenhuma
identidade
veem-se as mesmas correntes
que se fazem e se desfazem
pessoas que se desfazem
e outras que com mais coragem
permanecem por muito tempo
como estrelas na paisagem
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amigos
são coisas ternas
entre o terno
e o eterno
eles
são
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desorganizar os roteiros agradáveis
da mesmice e especular as estrelas
do abecedário do vão
entre as
palavras
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hemianopsia heterônima occipital

não luto contra meu coração
luto contra meu cérebro
meio obscuro
pelo
olhar
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Foto de Julio Carvalho



















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