quinta-feira, 10 de outubro de 2013

das origens dos poemas...











































"você já se perguntou o que acontece com todos os poemas que as pessoas escrevem?
aqueles poemas que elas não deixam ninguém ler?
talvez eles sejam pessoais e particulares demais
talvez só não sejam bons o bastante
talvez a mera sensação de que alguén possa ler uma manifestação tão sincera seja vista como
deselegante
frívola
boba
pretensiosa
melosa
banal
sentimental
trivial
tediosa
excessiva
obscura
inútil
ou
apenas vergonhosa
é o suficiente para dar a qualquer aspirante a poeta boa razão para esconder sua obra dos olhos do público
para sempre
naturalmente muitos poemas são 
destruídos imediatamente
queimados
rasgados
jogados na privada
vez por outra eles são dobrados em quadradinhos e enfiados sob o canto de um móvel bambo
(e assim se tornam muito úteis)
outros ficam escondidos atrás de um tijolo solto
ou
lacrados no verso de um antigo despertador
ou
colocado entre as páginas de um livro obscuro que tem poucas chances de vir a ser aberto
algum dia alguém pode encontrá-los
mas provavelmente não
a verdade é que a poesia não lida quase sempre não passará disto
condenada a juntar-se a um rio vasto e invisível de refugo que aflui dos lugares distantes
bom
quase sempre
em raras ocasiões alguns escritos particularmente insistentes vão fugir para um quintal ou uma viela soprados pelo vento ao longo de um aterro na beira da estrada e descansar enfim num estacionamento de shopping center
assim como tantas outras coisas 
é aqui que algo extraordinário tem lugar:
dois ou mais escritos poéticos vagam até se encontrar devido a uma estranha força de atração que a ciência desconhece e vagarosamente grudam até formar uma bolinha disforme
se deixada em paz
essa bola gradualmente fica maior e mais redonda pois versos livres
segredos
confissões
reflexões
desejos
e cartas de amor não enviadas
também se prendem uma a uma
esta bola arrasta-se pelas ruas como folhas ao vento por meses até anos
se ela sair apenas à noite
tem boas chances de sobreviver ao tráfego e às crianças
e com seu lento rolamento evita os caracóis (seu predador número um)
com certo tamanho 
ela se protege por instinto do mau tempo
despercebida
caso contrário
vaga pelas ruas
buscando
restos perdidos de pensamento e sentimento
com mais tempo e sorte a bola de poesia se torna
grande
imensa
enorme
um vasto acúmulo de pedaços de papel que acaba subindo ao ar
levitando apenas com a força de tanta emoção não dita
e flutua suavemente sobre os telhados dos lugares distantes quando todos estão dormindo
inspirando cães solitários a latir no meio da noite
infelizmente
uma grande bola de papel não importa o quão grande e flutuante
ainda é algo frágil
mais cedo ou mais tarde ela será surpreendida por uma rajada de vento
castigada por chuva forte e reduzida em questão de minutos a um bilhão de tiras molhadas
uma manhã todos acordarão para ver uma polposa sujeira cobrindo os jardins
entupindo sarjetas e encobrindo para-brisas
o trânsito ficará prejudicado
as crianças encantadas
os adultos perplexos incapazes de conceber de onde veio tudo aquilo
ainda mais estranho será descobrir que cada massa de papel molhado contém diversas palavras desbotadas prensadas em versos acidentais quase invisíveis mas inegavelmente presentes
e para cada leitor vão cochichar uma coisa diferente
coisas alegres
coisas tristes
verdadeiras
absurdas
hilárias
profundas
e perfeitas
ninguém será capaz de explicar a estranha sensação de leveza nem o sorriso escondido que perdura mesmo depois que os varredores de rua vêm e vão."

Shaun Tan - Contos de Lugares Distantes

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