sexta-feira, 13 de março de 2015

dos sapatos...

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"Um amigo, que é poeta, muito bom poeta, reclama de um incômodo íntimo, um mal-estar sem nome, que nunca o abandona _ mesmo nos melhores momentos de sua vida. Escondo seu nome porque ele me fez esse desabafo durante um jantar, talvez empurrado pela força de um bom vinho. Não é a primeira vez que ouço de um poeta uma reclamação semelhante. Poesia e mal-estar parecem estar não apenas associados, mas intimamente ligados. Um não existe sem o outro. Um é, de certo modo matreiro, sinônimo do outro.

          Recordo-me desse amigo ao reencontrar um comentário de Paulo Leminski a respeito das "condições socialmente adversas, negativas" em que o poeta trabalha. Eu o anotei nas margens de um livro de Sêneca (que relação terei visto entre eles?); parece que algum tempo depois, já que escrevo agora com outra letra e a lápis, acrescentei: "trecho de 'Poesia: a paixão da linguagem", citado por Julieta Maria). É tudo muito vago. Já não sei dizer quem é Julieta Maria. A folhas de meu livro de Sêneca estão amareladas; a edição é dos anos 1970. O fato é que a citação de Leminski agora reaparece para me sacudir. E para me fazer lembrar de meu amigo. 

          Diz Leminski: "Chego às vezes a suspeitar que os poetas, os verdadeiros poetas, são uma espécie de erro na programação genética". (Também eu pareço ter anotado suas palavras no livro errado - mas será?) Continua: "Aquele produto que saiu com falha, assim, entre dez mil sapatos um sapato saiu meio torto". Não é nova a ideia do poeta torto. "Vai ser gauche na vida" - as palavras de Drummond, no "Poema de sete faces", já resumem tudo. Ainda assim, é perturbador ouvir Leminski.

          Ele persiste na imagem do sapato _ o que me parece ser, já agora, um salto adiante: "É aquele sapato que tem consciência da linguagem, porque só o torto é que sabe o que é o direito". É por isso que não faz sentido algum a ideia de "endireitar" um poeta. De domesticá-lo. De enquadrá-lo em um modelo, ou uma norma. A poesia não tem a casa em ordem; ao contrário, certa desordem é necessária para seu nascimento. Pensem no próprio Leminski. Pensem em Vinicius de Moraes. Em Orides Fontela. Em Hilda Hilst. Em Mario Quintana. Diferentes, muito diferentes entre si. Cada um, no entanto, com sua desordem.

          Vai em frente Leminski: "Então, o poeta seria, mais ou menos, um ser dotado de erro, e daí essa tradição de marginalidade, essa tradição moderna, romântica, do século XIX, do poeta como bandido, do poeta como banido, perseguido". Não é que o poeta tenha que levar uma vida errática. Não é isso. Não é tão fácil. Pensem em João Cabral, em seu escritório de embaixador. Em Jorge de Lima, em seu consultório médico. No próprio Drummond, em sua mesa de burocrata no Ministério da Educação. Adelia, que escreve e reza. Manoel de Barros, que escrevia trancado a sete chaves, como um monge. Tudo parece em seu lugar _ mas, por dentro, que turbulência. 

          Continuo a seguir Leminski: o poeta é aquele sapato que se desvia da série. Aquele a quem, sob certos olhos, estão destinados o descarte e o lixo. Aquele que, fosse mesmo um sapato, seria vendido em "ponta de estoque", por defeito, ou por ser extemporâneo. Não é por outro motivo que os poetas estão na ponta _ isto é, na parte extrema. Não é por outro motivo que são vistos como extremados e (sigo Leminski) e excepcionais _ ainda que a eles só se dirija o desprezo do esnobismo e sua poesia sequer seja lida, vista como inútil ou abjeta. 

          Penso nos poetas da nova geração. Marco Lucchesi, em sua mesa de chá da Academia Brasileira de Letras. Lucinda Persona, dando aulas de biologia na universidade. Alberto Martins, em seu escritório de editor. Nuno Ramos, em seu ateliê de artista consagrado. Antonio Cicero, em suas lições de filosofia. O poeta pode ter várias faces. Pode seguir vários caminhos _ até mesmo caminhos retos e respeitados. Por que não? É por dentro que algo se desvia. É na alma que um sapato 
torto se desenha e o faz escrever."

Os sapatos de Leminski - José Castello 
O Globo - 11.03.2015
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qual o problema com algumas palavras
desentendemos
porque os corações são sempre fronteiriços
da distância entre duas verdades
enfeito a minha pele de lobo
para poder conter meu rosto 
em algum desejo
idêntico ao seu
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andando um passo a frente
deixei pra trás 
um mar de gente
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longo o caminho
da flor
até o
espinho
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ainda prefiro a existência à extinção
talvez os deuses sejam gentis conosco
tornando a vida mais desagradável 
à medida que envelhecemos
por fim
a morte nos parece menos intolerável 
do que os fardos que carregamos
a velhice
com sua agruras chega para todos
eu não me rebelo contra a ordem universal
afinal
vivi o suficiente
tive o bastante para comer
apreciei muitas coisas 
– a companhia dos amigos
o pôr do sol
observei as plantas crescerem na primavera
de vez em quando tive uma mão amiga para apertar
vez ou outra encontrei um ser humano 
que quase me compreendeu
que mais posso querer?
não há razão em aceitar a mim e a minha obra 
porque vivi o suficiente
eu não atribuo importância insensata aos decimais
a fama chega apenas quando morremos
e francamente
o que vem depois não me interessa
não aspiro à glória póstuma
minha modéstia não é virtude
o trabalho é minha fortuna
estou muito mais interessado 
em um botão florescendo 
do que no que possa me acontecer 
depois que estiver morto
e não é pessimismo
só não permito que nenhuma reflexão filosófica 
estrague a minha fruição 
das coisas simples da vida
não penso na  persistência da personalidade após a morte 
tudo o que vive perece
por que deveria o homem construir uma exceção?
não gostaria de retornar em alguma forma
e nem de ser resgatado do pó
porque sinceramente 
a gente reconhece os motivos egoístas 
por trás de conduta humana
e não tem o mínimo desejo de voltar a vida
movendo-se num círculo
seria ainda a mesma
além disso
mesmo se o eterno retorno das coisas 
nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal
para que serviria
sem memória? 
não haveria elo entre passado e futuro.
pelo que me toca 
estou perfeitamente satisfeito em saber 
que o eterno aborrecimento de viver finalmente passará
nossa vida é necessariamente uma série de compromissos
uma luta interminável entre o ego e seu ambiente
o desejo de prolongar a vida excessivamente 
me parece absurdo
é possível que a morte em si 
não seja uma necessidade biológica
talvez morramos porque desejamos morrer
assim como amor e ódio por uma pessoa 
habitam em nosso peito ao mesmo tempo
assim também 
toda a vida conjuga o desejo de manter-se 
e o desejo da própria destruição.
do mesmo modo 
com um pequeno elástico esticado 
tende a assumir a forma original
assim também toda a matéria viva
consciente ou inconscientemente
busca readquirir a completa
a absoluta inércia da existência inorgânica
o impulso de vida e o impulso de morte 
habitam lado a lado dentro de nós
a Morte é a companheira do Amor
juntos eles regem o mundo

- adaptação poética de entrevista de Sigmund Freud
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tríptico crítico:

"Aquiles seria intolerável, 
não fosse por seu calcanhar!"
Sigmund Freud

"nossos complexos 
são a fonte de nossa fraqueza
mas com freqüência 
são também 
a fonte de nossa força."
Sigmund Freud

"Botas...as botas apertadas são uma
das maiores venturas da terra, porque,
fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar."
Machado de Assis
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