sábado, 28 de fevereiro de 2015

dos recados...

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"there is, however, a unique aspect of birth: 
the umbilical cord is severed, 
and the infant begins his first activity: breathing."
                            
Erich Fromm
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Foto de Damí Carlos
e a nuvem foi lá longe 
e precipitou
num ato
deslavado
de 
tempestade

UM

recado ao outro perdido

o sonho é  a uma falha no tempo
todo desespelho de causa
causa desespero
de aperto
entre duas lâminas
de um único reflexo
ninguém eu olho
num sonho
o outro entrega sem resposta
surta
antes era pouco
o pouco vira menos 
e o menos vira nada
quando se percebe
tudo do outro
deixa de ser porque sonhou
o espelho que somos
essa sobreposição mal arranjada 
de olhares
é conquistada pelas sonhos
destituídos
damos
em nós
lugar aos reflexos
por muitas vezes
quando faltei em mim
ninguém me vigiava
agora falam 
tão invisíveis
os furacões
e eu aqui
no olho
..........................................................................

DOIS

não se preocupe
na sua ausência
eu dou conta
do menos
te amo
mesmo dormindo
eu dou conta
não sumo
somo e multiplico você
..........................................................................

"morro, amor
todo dia eu sei que vou morrer de ti
e que amanhã de novo eu estarei aqui
pra não cicatrizar essa ferida
até aonde a morte nos permita
morro, amor
morro, amor
morro, amor
morro, amor
todo dia eu sei que vou morrer de amor
como se diz morrer de rir ou de calor?
mas sei também que o amor um dia morre
contra todo amante o tempo corre
morre o amor
morre o amor
morre o amor
morre o amor
driblando esse destino nosso amor se faz
a cada sol a pino eu peço um dia a mais
pra não acreditar na despedida
até aonde nos levar a vida
morro, amor
morro, amor
morro, amor
morro, amor
no palco de um teatro, no hall, no saguão
no quarto de um apartamento ou num portão
num brinde, numa brincadeira sem razão
não há como blindar um coração
pra não acreditar na despedida
até aonde nos levar a vida
morro, amor
morro, amor
morro, amor
morro, amor
no palco de um teatro, no hall, no saguão
no quarto de um apartamento ou num portão
num brinde, numa brincadeira sem razão
não há como blindar um coração"
Arnaldo Antunes
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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

dos detalhes...

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"isso de ser uma ausência
de dizer a que não veio
de ser o único da turma
fumaça esparsa que a brasa sua
leveza sem esteio
mina d'água sob a rua
isso de ser jogado fora
ao pé da terra
pólen na areia
moita em meio à guerra
imenso mar sem beira
osso que se esfola
resto de feira
isso de ser uma quimera humana
mero pulsar de banzo
margem de afetos
fugas
desenganos
isso ainda vai dar samba
poema
ou pano pra manga."

Fred Girauta. 
"Isso dá nisso". In: Nós. 
Porto Alegre: Vidráguas, 2013.
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details





























o cadáver do poeta exumado

porque logo eu poeta?
acho que foram aquelas
escadas
da escola de farmácia 
onde Drummond 
também esteve
aquela poesia
contaminou
cada parede
subindo os degraus
deixando tudo
colunas 
do prédio impregnadas
de poesia
muros
e poemas e reações 
doentias 
(as minhas)
por coisa de tanta
causa química 
inexplicada
era uma farmácia 
24 horas
na veia
aberta
uma injeção 
de palavras
a trovejar
nas
pupilas 
pálpebras
em noites sem sono
estudando 
eu poeta
sem saber
que a química 
me abandonaria
de vez
para a poesia
tomar conta
das vísceras 
eu pobre mortal
convivendo
agora com ela
essa coisa intensamente
desajuizada
retirando de mim
eu
em pedaços 
eu
em chumaços 
de poesia
eu 
aqui poeta
filósofo 
cotidianista
assustado
desajustado
em pleno
poema
nu

(preciso excomungar
até o último insulto)

um palavrão 
essa senhora
sua puta
ordinária 
poesia
mãe
....................................................................................

20:08
oito e oito
sozinho
entre um temaki
e um blues...
....................................................................................

"alegria 
por onde anda 
seu fulgor divino?
filha do vento
humanos ébrios de desejo
entram em seu sagrado santuário 
seus encantos unem novamente
o que o rigor do tempo separou
todas os homens se igualam
onde paira seu voo suave"

Ode à Alegria
(primeira estrofe)
Schiller - adaptado
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mesmo que nunca venha ser ouvida
é para sempre qualquer despedida
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"que grandes corações eles possuíam.
vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia.
agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).
os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor."

Trecho do "Necrológio dos desiludidos do amor" - 
Carlos Drummond de Andrade
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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

das resistências...

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"isso de ser uma ausência
de dizer a que não veio
de ser o único da turma
fumaça esparsa que a brasa sua
leveza sem esteio
mina d'água sob a rua

isso de ser jogado fora
ao pé da terra
pólen na areia
moita em meio à guerra
imenso mar sem beira
osso que se esfola
resto de feira

isso de ser uma quimera humana
mero pulsar de banzo
margem de afetos
fugas
desenganos

isso ainda vai dar samba
poema
ou pano pra manga."

Fred Girauta. "Isso dá nisso". 
In: Nós. Porto Alegre: Vidráguas, 2013
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Ilustração de Damí Carlos



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um jogo do acaso
contra o horizonte
as linhas se perdem
os homens
tecem os dias
nas noites
ao deitar
cada corpo
um carretel
amarrar os fios
arrancar de peles
a ordenha das palavras
a linha presa no horizonte
tecendo difícil
as próprias grades
da cegueira
mesmo assim
persigo as palavras
no fundo dos olhos
na memória das pedras
no ruído das coisas vivas
a pele desafiada
desfiada
traduzindo-se em deserto:
onde resiste um poema
o oásis sou eu
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sábado, 21 de fevereiro de 2015

dos ariscos...

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"poeta
profissão de risco:
tanger palavras
cúmplices do jogo
no abismo misterioso
do sentido
arisco

arrisco"

PROENÇA FILHO, Domício.
"Poética". In:O risco do jogo. São Paulo: Prumo, 2013
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outras cores de saudade
para os amores efêmeros
mais difícil que o preto e o branco em poesia
a aura incômoda
do fim
cor de sangue de lenço branco marchando
contra o  coração
sangue de içar monumentos exibidos
em praça pública
sangue de realeza azul
de despedir-se
depois da chuva
sem nenhum
arco-iris
...........................................................

economia
só de água:
o fogo
não me poupa
nem por dentro
nem por fora
...........................................................

a obra não encara a vida
fora
da linguagem
...........................................................

tenho olhos:
um que peca por excessos
e outros dois
que pecam por falta
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domingo, 15 de fevereiro de 2015

dos raios...


  "a felicidade pode ser de carne 
  de pele apenas - corpo sem cara 
  nem cabeça, mas com a boca máxima 
  e muitos braços, peitos, coxa 
  perna musculosa, clavícula 
  omoplata, ventre liso esticado 
  peludo no lugar certo do sexo 
  e mais o cheiro preciso, exasperado 
  da axila, virilha, pé 
  tudo chegando junto, de uma vez 
  ou aos poucos, esquartejado"

Armando Freitas Filho
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começar poesia é intenso
como raios que caem na terra
mais intenso é refazer o que foi escrito
o que estava à vista
sentido
no pensamento
no corpo
e reescrever de outra forma
em outra fôrma
o novo curso rasga a pele
até se adaptar
feito nuvem
poesia é coisa imensa 
um raio que não espera
..........................................................

entre os vires e os devires da vida
..........................................................

prefiro um quarteto musical
do que um triângulo amoroso
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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

das perguntas...

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"Gosto de ficar na sombra das coisas
no segredo delas, gosto
de entranhar a criação
de vagar como as ideias
como a arte que se estranha
e, incerto, incauto
renasço a cada dia."

           Adonis
.



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o que é o vento?
alma que não quer
habitar o corpo

o que é o espelho?
segundo rosto
terceiro olho

o que é a onda?
imagens em movimento
na tela do mar

o que é a praia?
travesseiro para descanso da onda

o que é o negrume?
útero grávido de sol

o que é poema?
criança
que vive
em
mamar
contínuo

o que é poeta?
homem
que vive
para
amar o
contínuo
da palavra

o que é o sonho?
elevar o real
ao nível da fantasia

o que é o pó?
futuro do corpo

o que é o horizonte?
espaço que se move sem parar

o que é o caminho?
anúncio de partida
escrito em folhas 
que o pó desenhou

o que é a árvore?
lagoa verde cujas ondas são o vento

o que é a morte?
carro que leva
do útero da mulher
ao útero da terra

o que é a lágrima?
guerra perdida pelo corpo

o que é o desespero?
descrição da vida na língua da morte

o que é a coincidência?
fruto na árvore do vento
caindo entre as mãos
sem se saber

o que é o insensível?
doença que mais se propaga

o que é a memória?
casa habitada só
por coisas ausentes

o que é a poesia?
navios que navegam
sem portos

o que é a metáfora?
asa aliviando
no peito das palavras

o que é o fracasso?
musgo boiando no lago da vida

o que é a surpresa?
um pássaro
que escapou 
da gaiola da realidade

o que é a história?
um cego a tocar tambor

o que é a sorte?
dado
na mão do tempo

o que é a linha reta?
soma de linhas tortas
invisíveis

o que é o umbigo?
meio caminho
entre
dois paraísos

o que é o tempo?
veste que usamos
sem poder tirar

o que é a melancolia?
anoitecer
sem ter espaço no corpo

o que é o sentido?
início do não sentido
e seu fim

Adonis (Adaptado por Julio Carvalho)
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da datilografia...

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"perdeu o fio da meada
apagou sua estrela guia
seus passos viraram pedra
o tédio escavou seu rosto
juntou devagar os restos 
juntou-os para a vida, se espalhou"
                                                     Adonis - outra voz
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monumento

por ser e insistir no amor
construí a vida
sobre a pedra que vejo de luz
alçada da rua
como um grão maior
pesa sobre minhas letras
faz sombra nos meus poemas
por ser amor
permaneço
construo sobre a luz
e um bocado dessas pedras
nos meus dias
constroem
comigo
..............................................................................

nos braços de outro alfabeto o poema dormiu
e perdeu a inspiração
e não deu em nada
vai pernanecer recluso até sair do exílio
por onde e quando acordo o que dorme?
..............................................................................

revolta a(r)mada: armas e poemas atirados ao crepúsculo
..............................................................................

avança desarmado
pela mata sem ser detido
como nuvem
ou pássaro que seja
ontem carregou uma montanha
e mudou um rio de lugar
atravessa o avesso
do aparo do dia
dos pés produz um caminho no dia 
e da noite faz um calçado pra ser usado no dia seguinte
essa é a dinâmica das coisas
dos caminhos que espera que não sejam rudes
ali onde o prédio vira pedra e a sombra cobre a cidade
ele vive
e tenta errar o desespero
acertar a esperança
dança através do pó até que espirre
e dança para a chuva até que ela caia
enche a vida sem que seja visto
faz da vida poesia e mergulha nela
até acabar o fôlego
salva vidas com as palavras
mais a sua
que de outros
ansioso
transforma o amanhã em caça
corre atrás dele em desespero
finge calma com pílulas prescritas
às vezes sente que suas palavras seguem rumo à perdição
a confusão é sua pátria
mas tem os olhos cheios
assusta e conforta
exala terror
transborda ironia
descasca os homens como cebola
e despreparado
chora
é o verso que não volta atrás com o vento
a água que não retorna à fonte
cria sua espécie a partir dele mesmo porque não tem escolha
não tem escolta
seus ascendentes e raízes são seus próprios passos
caminha à beira de abismos
assustadores:
medo, mortes e perdas
mas tem o porte dos ventos
e enquanto poder voar
fica de palavras abertas
e vence os abismos
..............................................................................

o que o homem sente do pássaro é inveja
saudade é o que o peixe sente da nuvem
..............................................................................

passado
velho
enruga:
o passado
é um ferro a brasa
passando
bem ou mal
o presente amarrotado
para vestir o futuro
..............................................................................

na vida tudo chega de súbito.
o resto, o que desperta tranquilo,
é aquilo que, sem darmos conta, já tinha acontecido
uns deixam emergir os acontecimentos, sem medo
esses são os vivos. os outros vão adiando.
sorte a destes últimos que se vão
a tempo de ressuscitar antes de morrerem.
eu por exemplo, quero ser como a flor
que morre antes de envelhecer
..............................................................................

a escuridão é a filha da solidão
sob o céu que nos contempla
sem estrelas
não é a luz que carecemos
afinal
dentro da noite
pouco aprendemos a ver
o mundo necessita ser visto
sob algum tipo de luz
alguma claridade
que possa cair
com respeito
e delicadeza
sobre os
seres
só a luz revela
a claridade dos
seres
a escuridão é a
ausência de luz
sobre os
seres
só a luz revela a intimidade
e a nudez dos
seres
afinal quantas cores
tem a luz
ao parecer dos
seres
com olhos de camaleão?
..............................................................................

fui visitado
por meia morte
e agora vivo
a meia luz
..............................................................................

redundância:
cada inferno
pessoal
é individual
e intransferível
..............................................................................

descartável:
tem dias 
que quero 
me jogar fora

reciclável:
tem dias 
que quero
sair de dentro
..............................................................................


— o que farão os amores que não tive quando eu me for?
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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

dos abandonos...

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"algo em nós
nos
une e
nos invade

não sei
o que conta
nesse espelho
que nos
cabe

algo em nós
é uma ponte
ou uma
parte

algo em nós
é o outro
lado
que sabe"


LEAL, Weydson Barros. "O outro"

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....................................................................................

uma carta de amor
onde o amor pouco pode
porque o mundo é mundo:

a trilha
sonora do
aban/
dono
soa sempre
nunca
na branca voz 
da solidão 
começa com a poesia
da gramática 
interior
uma estrada de ossos
feitos dos piores
dias de qualquer vida
uma casa no meio
do caminho
um divã 
embalsamado
com a própria 
pele
do afeto que não se recebeu
ou o demais das dores
e os prazeres 
nos espelhos
indestrutíveis
onde 
não se alcança 
o outro lado
do prazer
o reflexo 
é em si
intocável 
e essas coisas intensas
passam
e onde estão as flores?
canteiros a escanteio
escamoteados
tudo começando 
pelo 
corpo
os nomes e órgãos 
herdados
o corpo
verdade absoluta da vida
e do distanciamento dela
o corpo 
quase sempre
apêndice 
como se a existência 
se realizasse
do lado de fora
de forma que a vida
parece ser verdade
somente no outro
com o outro
no 
corpo
do
outro
e dúvidas se existe vida 
sem o outro
após o outro
aos pós do deserto
e do abandono
do outro
sem necessariamente
existirem desertos
correndo nas veias 
e nos nervos
que nos pertencem
corpos debatendo-se
em voos rasantes próximos 
cheios de incertezas
pedindo para que o sono
os leve de volta ao sonho
a outro corpo
a outros corpos
ainda que tenha que sonhar
com eles
com outros desejos
com outros voos
cegos
...................................................................................

as doenças tem nome
as dores não 
...................................................................................

diga o que você quiser
para ninguém ter a sua opinião
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