sábado, 18 de junho de 2016

das ilhas...

.
"A palavra não tem nunca um único sentido, 
o termo, um único emprego. 
Toda palavra tem sempre um mais-além, 
sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos. 
Atrás do que diz um discurso, 
há o que ele quer dizer e, 
atrás do que quer dizer, 
há ainda um outro querer-dizer, 
e nada será nunca esgotado."

(Lacan, Seminário I,1975)

via Ditos Lacanianos

Foto de Magda Nascimento

























pássaro
passo a passo
enquanto
asa
enquanto
voo



..............................................................

A CHAMA, A FALA

Num poema leio:
“conversar é divino.“
Porém, os deuses não falam:
Fazem e desfazem mundos
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras,
jogam jogos terríveis.
O espírito desce
e desata as línguas,
porém não fala palavras:
fala lume. A linguagem,
pelos deuses acesa,
é uma profecia
de chamas e uma torre
de fumo e um colapso
de sílabas queimadas:
cinza sem sentido.
A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: as palavras
não são signos, são anos.
Ao dizer o que dizem,
os nomes que dizemos,
dizem tempo: dizem-nos.
Somos nomes do tempo.
Mudos também os mortos
pronunciam as palavras
que nós, os vivos, dizemos.
A linguagem é a casa
de todos, a casa suspensa
no flanco do abismo.
Conversar é humano."

"Octavio Paz"
..............................................................

alento
palavra que me aquece
e me segura
mas não encontro
porque

lentos
termos
e há tempos
que nenhuma alma
(nem a minha)
se compadece
ou um ser sequer
aparece
para oferecer
esse
título
de poema
tão
raro
..............................................................

MUDO*

criei estas palavras
com o meu sangue
e com as minhas dores
quase tudo eu compreendo amigos
eu quase tudo
outras vozes se juntaram
à minha
tudo eu quase compreendo amigos
como se eu pudesse voar
e me chegassem
para me ajudar
asas de aves alheias
todas as asas
assim vieram palavras
estranhas
desatar a solidão escura
da minha alma
de manhã
me parecem
não me apertarem
as angústias
terríveis nós
em torno da garganta
e no entanto
foram criadas
com o meu sangue
e com as dores minhas
foram criadas por mim
estas palavras
(silêncios)
palavras para alegria
quando meu coração
era uma coroa de paixões
palavras de dor que penetram
e dos instintos que remoem
e dos impulsos que ameaçam
e dos infinitos desejos
e das inquietudes amargas
palavras de amor
que em minha vida floresceram
e hoje são jardins vazios
sem grades
nem flores
não cabem em mim
nunca couberam
minha dor foi
UM
grito
foi minha alegria, silêncio
(de novo)
depois os olhos
esqueceram as lágrimas
do coração de todos
e foram varridas
no vento
agora
digam-me
amigos
onde esconder
aquela aguda
fúria de soluços
tremores
e os medicamentos
dentro de um estojo escuro
digam-me
amigos
onde
esconder o silêncio
para que ninguém
nunca o sentisse com os ouvidos ou olhos
meus olhos
esses ocultos
essas palavras vieram
e meu coração
incontido como um amanhecer
rompeu-se:
no apego do vôo
nas suas fugas heróicas
nas mesmas palavras
que foram levadas
e arrastadas
abandonandas
e loucas
e esquecidas
sob tantas mágoas
tantas lágrimas
como um pássaro morto
embaixo
de
suas
asas

*livre adaptação
do poema FINAL
de Pablo Neruda
..............................................................

saudade
amigo
o real significado
dessa palavra branca que
escapa
se evade?
não
tem na boca
seu tremor delicado
saudade
os mortos não se recordam
dessa palavra
digna
de um só dicionário
os vivos
esses que a sentem sempre
guardam
a sete
chaves
saudade
é a memória
envolvida
em
nuvem
..............................................................

dois dedos
de afeto
e um
corpo
doce

com Vini Miranda
..............................................................

oração aos olhos
que carregam
as expressões
de uma vida dentro do olhar
aqueles olhos que brilham
quando vêem
alguém que transborda
de felicidade
caem as lágrimas salgadas
com o mesmo teor
de felicidade
ou tristeza:
existem
lágrimas
paralelas
das mais variadas cores
- pedras preciosas que brilham
pelo olhar
existe a descoberta
de cada alma
do ser que ela contém
transferindo todo o sentimento pela pele
que o habita

com Leia Santos
..............................................................























"Amo o amor que se reparte
em beijos, leite e pão.
Amor que pode ser eterno
e pode ser fugaz.
Amor que quer liberdade
para voltar a amar.
Amor divinizado que vem vindo,
amor divinizado que se vai."

Pablo Neruda
..............................................................

poesia
poesia
aqui está uma palavra mágica
que equivale a dizer:
«amor, amor»
e que deveriam pedir os povos
como pedem pão
como pedem paz
ou como desejam a chuva
para suas colheitas
..............................................................

passei por cima do medo
e ele não disse nada
o medo
não entende
nada
de
mim
..............................................................

sinto no decorrer dos dias
que tenho
todo o tempo do mundo
para resolver
e aprender algo
mas as horas passam
e o tempo vai se esvaindo
pelos meus dedos
e vão se acabando
os ponteiros
e quando chega
em algum fim
qualquer fim
acabou-se o tempo

com Leia Santos
..............................................................

a gente
às vezes chega a pensar
no meio deste caminho sem margens
que nada existe depois
que não se pode encontrar nada
ao final desta planura rajada de ruas
e de concretos secos
mas existe algo
uma multidão
ouvem-se muitas vozes
todas ao mesmo tempo
sente-se no ar o cheiro da fumaça
e se saboreia
esse perfume das pessoas
como se fosse
alguma esperança
..............................................................

como será que os olhos
ignoram todos os órgãos
e vivem a mesma vida
do resto do corpo
enfeite
punhal
imprecisa beleza
cega
sentida
completamente muda
na ponta
dos
dedos
..............................................................

há um certo ar de indiferença
do passar das pessoas
deixando livre
o medo
o terror
o assombro na rua
o trânsito
sinal
de perigo
incendiário na beira
das calçadas
um homem queria dissimular
dentro do metrô
como segurando
num ponto de apoio
inseguro
não bem olhava em volta
de olhar esgotado
de talvez
muito trabalho
já um velho
muito lento
se deixava ficar atrás
amigo do fluxo
ainda da janela do ônibus
longe
um menino caminhava cansado
e com o fluxo em si
sentindo como
lenda que não atravessaria
sua mente
nem tampouco a rua
impaciente
no passar da vida
e no passar
das esquinas do mundo
..............................................................

se agora sou ateu
que Deus entenda
a minha ironia
de ainda
acreditar
..............................................................

"o mito
é como uma espécie de trilha.
se você partir do mito,
você chega onde quiser."
"uma flor:
a flor do Sinete de Spinoza,
em que vem escrita uma expressão em latim:
"cuidado que eu tenho espinhos"

Nise da Silveira
-----------------------------
sou o que não estou
e o tamanho dos dias
não me guarda inteiro
sou o espelho da esfinge
onde os outros
pobres coitados
não me decifram
sou um código binário
uma intrínseca série
de cadeias e corpos
internos ardentes
sou uma alameda
e minhas árvores
só existem
nos sonhos
aprendi
aos berros
a me desentender
dos outros
o que me interessa
é a brisa
o vento
fala demais
e passa
feito um nada
ouço devagar
porque por dentro
as vozes
inúmeras
são rápidas
e se contorcem
feito
cordas num tropel
de cavalos
arreio e salto
eu no vento
escuto
o galope
da mesma brisa
..............................................................

ninguém entende
as almas dos poetas:
são almas muito violentas
esses lugares
de onde a poesia 
vem
..............................................................

Nenhum comentário: