sexta-feira, 3 de junho de 2016

das hibernações...

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"Eu sempre fui feito de sonhos. 
Muitos e mudos. Aos poucos descubro, porém, 
que eles são tão soltos que de nada adiantam.
Não adiantariam nem mesmo se eu soubesse para quem pedir suas realizações.
Pedir é uma arte. A única que eu não conheço.
Até meus quereres mais simples, meus desejos de poço, 
minhas implorações por sossego, por exemplo, 
só sossego, de poucos dias, meu Deus, sossego, até eles me são negados.
Nada do que eu quero me é dado. 
E deve ser porque eu não sei como e nem a quem pedir. 
Porque se eu falo, se eu rezo, se eu digo qualquer coisa, 
eu o devo fazer em uma língua morta. Junto com minhas preces, 
está sempre entrelaçado um feitiço de esquecimento. 
No momento em que eu digo algo, já nada se disse.
E a cada prece esquecida, a cada sonho despejado com a água do banho, 
a cada dia em que nem o mais simples me é dado, eu me torno mais frio, 
mais distante, mais brutalmente feito de rotina e raiva. 
Até que só elas restem, justo elas, 
no meu coração que já foi todo feito de sonhos."

Imploração - Vinícius Linné
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passei por cima de tudo
sem passar a limpo
e veio o tempo
e fez

resto
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brutalmente
em 
estado
de
hibernação
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a linguagem me esfaqueou 
era tão novo a cabeça 
que queria ser a espada
me sangrou de letras 
de um samurai caído na valeta 
palavras jorrando pela jugular
e uma vontade de saltar
precipícios 
desde o princípio 
mudei
soltando palavras
saltando lâminas
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causefeito

assim como uma última anotação
muitas vezes extensão de um asterisco 
ou reticências que bem podem se metamorfosear em gota de chuva e passar a ser único 
mas nenhuma gota cai igual a outra 
estou certo de que ao pé dessas palavras 
rés desta margem 
rodapé de mais um poema improvável 
feito de apagamentos e alguns acessos estranhos
de lugares falhos e falas dos outros 
do mesmo modo
estas palavras se dão ao branco que não é fim 
e o leitor sentirá a experiência bruta que perdura interiormente
escrever é esculpir? 
a intenção deste poema poderia estar 
na impressão sobre o branco da experiência mística, 
um arrebatamento ou estado de êxtase, mas não é. 
ausência e eterno disfarce, 
ele progride por caminhos diferentes, 
e a evidência que lhe é própria 
tem a duplicidade da luz e a opacidade da escuridão 
antes uma experiência de qualquer sensação emotiva
porque tão livre quanto o instante do inacessível branco
escrever um poema
a violência do não dito 
das insatisfações
dói na página
falo do branco da chuva sobre a página branca
ausência que não permite deitar palavras 
em busca do que não acontece e, 
sobretudo, de qualquer possível tragédia
escrevo pela exceção feita à imagem poética. 
céu-branco. nuvens obsessivas 
querendo ocupar os vãos. 
dias de chuva ocultando medos e tempestades internas
mas sejamos abomináveis, 
invisíveis homens que sabem que a noite é também um sol
façamos branco sobre branco homem das letras abandonando rastros com suavidade
palavras a troco de pegadas sobre o branco
espirros dos sapatos nas poças de chuva 
coisas que duram o tempo da chuva
por isso dói esse branco na página
no abdomen o reflexo dos pesos e preocupações 
fico estático com essa dor 
em seguida troco por palavras na chuva 
e o completar do branco na página 
em busca da sensação possível, 
diante do improvável 
e que esse possa se expandir ao branco da página
como extensão da chuva
expandir-se em visibilidade
branco sobre branco sobre branco
sobre o que não sabemos não me deixo enganar
pois sabemos que o líquido da chuva 
ou qualquer branco, se evapora. branco, frio e água.
insisto no branco e na chuva
até o desgaste das palavras
ou sua multiplicação
corpos e coisas diferem sensações também 
sabemos do abominável
apesar da invisibilidade
que o frio contraia os músculos e distraia a imaginação
contração e dilatação
alguma dor
todas as tempestades à deriva do vento
uma a uma
suaves e soltas 
gotas sem série, sem par, adensam o branco, 
o frio e a água. 
(dói muito esse falso branco da página - dói no abdomem)
nenhuma chuva é igual
nenhum poema
é gota antes de ser letra
é digital e liquida também
do branco, do frio, da água 
troco então, a palavra novidade pela palavra gota. 
muitos dirão que o novo não tem mais novidade 
e que a novidade deixou de ser nova. 
um outro coro diz o contrário. 
querer afinar isso seria ridículo. 
escrever no vazio. nuvens-chuva, 
obsessivamente. 
mas abandonar o vão de quem busca algo 
no fracasso das palavras 
e em um certo cansaço da vida como um bordado
vai aos poucos ocupando o branco da página
deixemos doer esse branco da página
expurgo
não à dor do abdomem
diferente é o frescor passageiro da chuva 
gotas vêm e pousam lentamente no branco. 
nuvens se adensam para se liquidificarem. 
escorrer, água em poça, refletindo nuvem, 
de novo água, vem, vai, aos córregos, aos rios correntes, 
às lagoas-espelhos, refletindo novas nuvens, 
nuvens nunca iguais. 
a imagem de nuvens escritas líquidas 
desse círculo invisível que se sabem formas sem repetição. no sobe e desce: 
água escorrendo, 
água nas calhas, água nas águas dos rios, 
água nas águas dos mares. 
desaguar a dor. a água vai 
sem conformar-se a forma alguma. 
a água no corpo também
e a dor 
e a transpassa. vaza-a. 
estendendo por dentro do corpo feito cova rasa
temida mais que cicatriz
um trauma-rastro dele 
não participa da memória do corpo daquilo que o corpo não consegue esquecer: 
a marca dos homens é a diferença entre sinal e chaga
sentido e significado. 
o corpo é uma forma da alma, mas não tem limites. 
toda dor na alma é disforme. 
é ainda quando a alma deixa de ser visível
à noite o corpo se expande 
e para facilitar chamamos isso de sonho 
eu sonho com os dias sem nuvens. 
a dor perde em êxito durante meu sonho 
e hesita entre som e sentido.
então encontro um
poema alto e cheio de poros. 
alguns dirão que não veem suas ações ocuparem 
lugares
planos 
ambientes
mas a ação das palavras é deriva e dom. 
é qualquer gesto que bifurca e esburaca o corpo 
para mover definições em direção ao sentido 
antes de minar a dor ou moldar o corpo com o significado, 
mover o corpo
qualquer corpo
vários corpos
todos os corpos
em espaço aberto
espaço propriamente espaçoso 
e mais do que especial: palavra
acordar o sonho e dormir no chão é pouco
o corpo imperfeito
qualquer um corpo especial
sim, reconheçamos, não é fácil
por amor
onde se salva
esse admirável corpo abandonado. 
corpo
salvo das chuvas e tempestades 
nem osso nem órgãos nem nada vertigem e pensamento
é gesto de apagamento
abandono de tristezas e de heranças 
sem culpa 
errar é seguir as pegadas dos outros homens inconscientes 
dos que provocam dores com
pegadas duras e abandonadas
cruéis até ninguém sabe porque ou onde 
ninguém sabe dizer
nem ousa
nem eles mesmos
e o denso branco da chuva se liquidifica 
e se liquida no branco desta página:
um poema branco sobre branco sobre branco
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cacofonia

detesto barulho
não se for de chuva
ou de coração
barulho de 
solidão
são duas linhas
de um trem
sem 
fim
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não sentiremos outra vez aquela noite
não escutaremos de novo a mesma música
a saudade é o oxigênio da lembrança
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ainda existe 
essa ovelha
que
negra
e não 
nega
o que
é
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