segunda-feira, 10 de março de 2014

das restaurações...


"via de regra
quando tudo acaba
é aí onde eu
começo."
Julio Carvalho
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"Um comerciante de móveis que acabara de comprar uma poltrona de segunda mão descobriu que num vão do encosto, uma de suas antigas proprietárias havia escondido seu diário íntimo. Por alguma razão – morte, esquecimento, saída precipitada ou penhora – o diário permaneceu ali, e o comerciante, mestre na construção de móveis, o encontrou  por acaso ao apalpar o encosto afim de provar sua solidez. Nesse dia ele ficou até mais tarde na loja abarrotada de camas, cadeiras, mesas e guarda-roupas, lendo nos fundos da loja o diário íntimo, à luz de uma lâmpada, inclinado sobre a escrivaninha. O diário revelava, dia após dia, os problemas sentimentais de sua autora, e o moveleiro, que era um homem inteligente e discreto, logo compreendeu que a mulher havia vivido dissimulando sua verdadeira personalidade, e que por um azar inconcebível ele a conhecia muito melhor do que as pessoas que haviam vivido junto a ela, e que apareciam mencionadas no diário. Ficou pensativo. Durante um bom tempo, a ideia de que alguém pudesse ter em sua casa, ao abrigo do mundo, algo escondido – um diário ou o que fosse - parecia-lhe estranha, quase impossível, até que uns minutos depois, no momento em que se levantava e começava a pôr em ordem seu escritório antes de ir para casa, deu-se conta, não sem espanto, de que ele mesmo tinha, em alguma parte, coisas escondidas das quais o mundo ignorava a existência. Em sua casa, por exemplo, em um vão do teto, numa caixa metálica escondida entre revistas velhas e trastes inúteis, o moveleiro tinha guardado um rolo de anotações que ia aumentando devagar, e cuja existência até sua mulher e seus filhos ignoravam. Ele não saberia dizer ao certo porque guardava esses bilhetes, porém pouco a pouco lhe veio a desagradável certeza de que sua vida inteira se definia não pelas atividades comuns exercidas à luz do dia, e sim por esse monte de bilhetes que se deteriorava neste vão. E que, de todos os atos, o fundamental era, sem dúvida, o de juntar de vez em quando mais um bilhete ao rolo carcomido.
Enquanto ligava o letreiro luminoso que enchia com uma luz violeta o ar negro acima da varanda, o marceneiro foi assaltado por outra lembrança: ao buscar um apontador no quarto de seu filho mais velho, encontrou por acaso uma série de fotos pornográficas que seu filho escondia na gaveta da cômoda. O moveleiro colocou-as rapidamente de volta ao seu lugar, menos por pudor do que pelo temor de que seu filho pensasse que ele tinha o hábito de mexer em suas coisas. Durante a ceia, ele pôs-se a observar sua mulher: pela primeira vez depois de trinta anos lhe vinha à cabeça a idéia de que também ela devia ocultar algo, algo tão pessoal e tão profundamente submerso que, ainda que ela mesma o quisesse, nem mesmo a tortura poderia fazê-la confessar. Sentiu uma espécie de vertigem. Não era o medo banal de ser traído ou enganado o que lhe dava tonturas como um vinho que embriaga, senão a certeza de que, justo quando estivesse já muito velho, iria talvez ver-se obrigado a modificar as noções básicas que constituíam sua vida. Ou o que havia chamado sua vida: porque sua vida, sua verdadeira vida, segundo sua nova intuição, transcorria em alguma parte, no escuro, ao abrigo dos acontecimentos, e parecia mais inatingível do que os confins do universo."

O ABRIGO - Juan José Saer - Tradução: Julio Carvalho
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