quarta-feira, 5 de outubro de 2016

dos revestimentos...

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"a caretice é uma doença 
e o remédio é desastrar-se."
Noemi Jaffe
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peles possíveis



























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dos rumores que se instalam
ignoro
medo
ira
culpa

- todos nos seus
indevidos
lugares

ignoro com seriedade
a consciência do medo
nas gengivas
a raiva
por essa existência
de pequenos naufrágios
e a culpa
no coração batendo vivo
deslocado
no fundo desta caixa
torácica

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(ana)crônica
de uma ótica
ou uma lente
moribunda


primeiro ei
de lavrar
esse teu mar
até que eu descubra
a direção
de alguma ilha
um eixo
orbital
ótico
de espécies
exóticas
espelhadas
no teu corpo
e imprimo de leve
tua imagem
com olhos
inteiros
escaneando
pedaços
teus
ainda que
turvos
ainda que
insanos
ainda que
estranhos
decidido
apenas
a arrebatar
tua pele
silenciosamente
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“tenho fome de me tornar em tudo o que não sou” 
– Waly Salomão
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a ausência é para o amor
o que o vento é para o fogo
ele extingue o pequeno
mas inflama o grande

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quem deseja lutar
precisa primeiro
avaliar o custo

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pra todo inverno
pra todo inferno
frio ou quente
tem sempre alguém
ausente

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as dores
são
avisos
visíveis
a olho
nu

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hoje
um
dia
assim
perdido
em
azul
claro
e
chuva
escura

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posso estar só
mas não sou de todo mundo
por eu ser só um
ah nem, ah não, ah nem dá
solidão, foge que eu te desencontro
que eu já tenho asas...
isso lá é bom?!

Marcelo Camelo - Doce solidão
(adaptado)

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um erro é como um buraco na estrada
só um pode até passar
sem problema algum
mas vários podem alterar todo
o trajeto

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poesia é justamente
a incerteza da palavra

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da perda
de mais uma perda
e de uma tal perda
que saqueia a mente
até a perda
da mente
incomodar
com esquecimentos
de outras perdas
começar com essa ideia sem rima
ou solução
então simplesmente esperar
implorar paciência
como se a primeira palavra
só viesse depois da última
depois de uma vida
à espera da palavra
que se perdeu
dizer nada além
do que se prendeu
da verdade da coisa
os homens morrem
a palavra falha
as palavras
não têm sentido
nas perdas
e portanto pedir
apenas palavras
muro de pedra
peito de pedra
jeito de pedra
carne e sangue
tanto quanto isso
para não perder
ou se perder
mais

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para mim é tudo a mesma coisa
onde começam
e terminam as pessoas
clara de ovo
cavo um olho
claro: diz
leite de ave, esperma
escorrendo da palavra
de mim mesmo
pois o olho
é evanescente
agarra-se só ao que é
não mais aqui
ou menos aqui
mas em toda parte
em todas
as coisas
as causas
ele nada
memoriza
nem anota
coisa alguma
mas não se abstém
do coração
e das coisas vivas
o olho espera
e se começa
acabará
como se estivesse aberto no bico
de um pássaro
como se jamais tivesse começado
a ser em parte alguma
o olho fala
do alto
e de distâncias
não menores do que estas
olhar de todas
as
solidões

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anticidades

e cada coisa perdida
uma lembrança
do que nunca foi
os morros
impossíveis
morros
divididos
e
perdidos
no brilho da memória
como se fosse tudo
resumido
no sol
ainda por nascer
imortal ao olho
onde o olho ora se abre para o som
do calor da infância
um pássaro
um fio de mato
adocicado entre os dentes
e os braços
arranhados
pelo arame farpado
das memórias invisíveis
mas as dores
visíveis
permanecem
estátuas

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de solidão
recomeço
tudo outra vez
como se fosse a primeira vez
que respiro
e portanto seja agora
que respiro
insistente
pela primeira vez
além das palavras
e do próprio ar
vivo
e portanto é nada
além do que se afoga 
no mistério do insondável poço
do meu olho
e o que vejo
é tudo o que não é:
uma cidade
do indecifrado
concreto
armado
a unhas e dentes
e portanto uma linha de pedras
já que sabe que pelo resto da vida
uma pedra
abrirá caminho a outra pedra
para erguer um muro
ilegível
rabisco de insatisfação
à imagem
de um imenso grafitti
de protesto
e que todas essas pedras
formarão a soma monstruosa
de uma parede
de insatisfações
como se
também todos juntos
pudessem começar a respirar
pela primeira vez
no espaço que os separa
uns dos outros
esses homens
incompletos
onde o muro é palavra
e não há palavra
que ele não conte
como pedra no muro
desfazendo
os
silêncios
e os espaços
entre
eles

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r_existencial

contrariando
o dia que nasce
contra a fachada do crepúsculo
sombras
fogo e silêncio
nem mesmo o silêncio
mas seu fogo –
a sombra
que se projeta numa respiração
difícil
por penetrar o silêncio deste muro
pelas manhãs
tenho de me deixar para trás

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pela manhã
ainda doem as costas
algum passado
inflando asas
nada menos que nada
pousadas no fio
na noite que vem
do passar
da dor
para ninguém na noite
que não vem
mesmo sem espera
e o que resta
na borda
do branco
invisível
no olho de alguém que fala
ou falta
uma palavra:
a dor
vem de lugar nenhum
na noite
quando alguém falta
como o branco de uma palavra
arranhada
no peito

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então vamos comer
regurgitar o dia
digerir
a seiva
selva
amarga
em bile
desbastar
o fim
em preces
e fezes
das coisas mal feitas
e da sujeira
das ruas

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um abraço
é um traço
que remove
distâncias
e diminui
desertos
quando ausências

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última batalha
a noite é outra
um deserto-oásis
um sol ofuscante
sem filtro
- os olhos ardem

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minha palavra se volta
ao nome que se dá à luz
arcando com pedras
que me protegem de muros rubros: o coração
rói, mas não pode saber
meu saque; a língua esfolada
raspa
resta
na mais funda medula da terra
ouço
o alento dos anjos

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que casa em mim
tentastes erguer,
que escrita negra
quando vem o fogo?
recuei tardio
aos teus sinais 
bani-me de toda tua densidade
e foi-se
como peso morto
minha ansiedade

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...e as pessoas
cingidas de abuso
memorizam a derrota:
em cada sílaba
um ato de sabotagem

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depois de hoje
nada rega o caule
a pedra nada perde
falar não alcança a lama
logo o povo dança
por um calar escuro
desliga a luz
a vaga
naufraga
camufla
o vento discursa: é travado e triste
todo nome será deserto

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a ira dentro da ira

a casca não basta
enrosca
lascas redundantes e troca
pedra por seiva
sangue por represa em fuga
enquanto a folha se fura
se malha a palavra
de ar
e tanto mais
profunda
a revolta
entre lobo e cão
se solta
a
raiva

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palavras surgem entremeios — poemas
convivem no peito de um pássaro
entre uma veia e outra
respira a palavra
dentro de um ninho
suspeita-se a semente
encoberta
por coisas mais simples
não vão confessar
- ainda
apenas o oco grávido
gravita

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poesia:
banhos
e rebanhos
de palavras
arrebatadas

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eu sou poeta. 
em desalinho com as palavras concretas.
minha vontade está concentrada toda nisso:
nos poucos que me leem 
e nos muitos que me sentem!
eu me contento perfeitamente 
em ser invisível a mim mesmo.

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