quinta-feira, 1 de setembro de 2016

dos maiores...

.
“Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá já para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.”

.
Manuel António Pina

"Neste preciso tempo, neste preciso lugar". (trecho)

.































o maior golpe
não é o político
é o
poético
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dois
o número do amor
da encenação em que Eros toma parte
o encontro romântico
já é o prelúdio do grande desencontro
fatalidade predestinada
o instante
– fulgor –
em que o encontro
acontece é tema de exercícios
muitas vezes dolorosos
e poéticos
o enamoramento
experiência do outro
(ou da projeção de si)
é parte do conteúdo essencial
da vida
e um tema caro à poesia
desde as suas raízes 
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INSÔNIA: explicação

universal e atemporal
a insônia é
para o poeta
mais que
um estado
ela é
simbolicamente
uma condição
referindo-se
ao “excesso de vigília”
de que padece
sua concentração poética
empenho constante
e a consciência aguda daquilo
que o cerca
à noite
sua hora natural
os trabalhos da insônia
fazem do poeta
um indivíduo que trafega
no avesso da máquina do mundo
– seu habitat –
onde pode alcançar
a criação 
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VIDA

o que dizer dela?
ela é o princípio da poesia
não em
determinismo causal
(“se vida - obra oral”)
relação especular
entre o biográfico e o poético
mas como dom da existência
e o poema
como a continuidade orgânica do poeta 
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os homens
quando amam
dão longos olhares
e longos suspiros
vorazes
as feras
quando amam
turvam os olhos
dando mordidas de espuma
os sóis
quando amam
vestem a noite
com tecidos de terra
e dançam majestosos
para o amado
os deuses
quando amam
prendem um corpo
como um universo inteiro
e tem a chama do amor
tatuada na pele 


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eu
à poesia
só permito uma forma:
sensibilidade
sem a precisão das fórmulas
matemáticas
dos poetas modelo
estou acostumado
e cansado
eu ainda falo versos e não fatos
pois os fatos
estão consumados
e os poemas
sempre serão
encantados 


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que vou fazer
meio cego e entediado
e órfão
num mundo
em que cada um tem vista e pai e letra
onde entre antenas
como sobre aterros
há paixões?
onde o choro
é coisa rara
e acontece
atrás
dos
muros? 


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"para meus versos
escritos num repente
quando eu nem sabia que era poeta
jorrando como pingos de nascente
como fagulhas de uma fogueira
irrompendo como pequenos diabos
no santuário, onde há sono e incenso
para meus versos de mocidade e de morte
– versos que ninguém pensa em ler! –
jogados em sebos poeirentos
(onde ninguém os pega ou pegará)
para meus versos
como os vinhos raros
chegará seu tempo."

Adaptado de Marina Tsvetáieva 


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corto os pulsos
irreprimível
irrecuperável
a vida vaza
em vermelho
ponham embaixo
vasos e vasilhas
recolham a dor
todas as vasilhas serão rasas
poucos os vasos
pelas bordas
escorrem
para os veios da terra vazia
matriz da vida
o mesmo vermelho
o mesmo irrecuperável
irreprimível
pois de mim
mesmo assim
ainda vaza
poesia 


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trinta e um. terça-feira. de tarde.
pela janela uns contornos de cidade
algum grafiteiro escreveu
que em São Paulo pode haver amor

e por tédio ou preguiça
todos acreditaram e assim vivem:
esperam encontros
temem adeuses
e cantam canções de amor

mas a outros revela-se o enigma
e o silêncio repousará sobre eles
descobri isto por acaso
e desde esse momento sinto-me mal

e os deuses em mim
como a poesia
resistem

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"o “ser poeta” é inescapável para aquele que o é.
ele é o arauto das vozes anônimas que, juntas, compõem a sinfonia
truncada do mundo; o ventríloquo do que precisa ser dito,
mas não pode dizer-se a si mesmo. nos poemas, o poeta
reflete sobre a sua dádiva, que é também a sua maldição
(a “mal-dicção” da verdade, que lhe ocupa incansavelmente)."


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nas ruas
de minha alma
passadas de loucos estalam
paredes de frases ásperas
onde
forcas
esganam cidades
e em nós
as nuvens coagulam
pescoços de prédios
em formas oblíquas

soluçando eu avanço
por vias que se embar-
ilham
meus olhos
os olhos
de cruci-
fixas
pessoas 


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você tem poemelhos
nos joelhos
rimarilhas
nas virilhas
somenetos nas colunas
cervicais das palavras
feito luvas
ensandecidas
tem olhos de trilhas de contos de perdas
olhos de cerdas concretas
somadas às palavras
fendidas
um pouco de tudo
um pouco de nada
poema em você
parece que não
falta
poema em você
parece fagulha
parece
que
salta 


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meu poema é um só
por toda parte caminha
não o darei a ninguém
ele é coisa minha
nem por um raio
nem por um olhar
nem por um instante
nem por falsas intimidades
a ninguém
nunca
que morram as cidades
numa noite constante
nos braços vou apertar
que não possa escapar
faço as mãos
os lábios
o coração queimar
se desaparecer na noite infinita
será por mim
pelo meu querer
meu poema
a mais ninguém
ser insensível
o entregarei! 


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"amei-te
– e pode ainda ser que parte
do amor esteja viva na minha alma.
mas isto, pois em nada hei
de magoar-te
não deve mais tirar a tua calma.
sem esperança e mudo em meu quebranto,
morto de ciúme e timidez também,
eu te amei tão sincero e terno quanto
permita Deus que te ame um outro alguém."


Amei-te / Aleksander Púchkin

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pessoa junto a pessoa para
pessoa e pessoa puxam conversa
“onde nos encontraremos da
próxima vez?"
pessoa a pessoa então responde:
já sei onde
lá debaixo do viaduto
vi algum luxo
atirado ao mundo
quanto a quem
por que razão
deixou
foram sobras
antes dos pombos
antes algum alimento tem
sejamos rápidos
mais ninguém
os pombos sumiram no céu
quem fez esse bem
talvez vá ao céu
também
é sempre a fome que aguarda o outro
não o morto
mas o novo
vivo
de
fome 


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queria profetizar
poemas espetaculares
aplausos imensos
e alegria
e lágrimas
mas o que me inquieta
poeta
e o arco da forma
escolho os temas e
ao que for
eu darei lâmina
um corte na rima
soco no estômago
e farei dele flecha
exata
que
após deixar o arco
a linha dobrada servilmente
lançando a palavra
voará certeira até que o poema
coisa lenta
se faça
completamente 


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nas
tardes de chuva
o corpo
desafiado

retrucam: cem mais cem!
pensamentos confusos
que Deus no além
me acalme (Amém!)

apostas, riscos, bis!
quem ganha faz um X
com giz

tardes de chuva
encargos graves
em desalinho
só meu corpo
sabe 


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"Lembrei, quanto tempo faz
Pensei, me apeguei demais

Ao encontrar, medo de
não conhecer e continuar a morrer

Eu sei, nada é assim tão simples
se foi num belo dia desses

O seu olhar indefeso,
me fez lembrar quanto tempo
O seu amor reconheço

Eu sei, nada assim tão simples
se for, um belo dia desses
Lembrar é ter aonde ir
Calar é poder ouvir

E muito mais que poderes
é se perder muitas vezes

Lembrei quanto tempo faz
Pensei, me apeguei demais
na paz do momento,

e muito mais que momentos,
a quem estampas o tempo?
no seu olhar reconheço
o meu amor indefeso "

Amor Indefeso – Abrão 


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amar é se perder muitas vezes 


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para Sandra Flor

levei um doce
para uma Flor
ela não quis
por alergia
as sementes das flores
incham
muito
elas não suportam
desinfetantes
e as coisas
exageradas
as flores são
coisas
muito
delicadas

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dias
sem
voz
e
sem
luz 


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extraíram-me
uma nota
o dó
agora só sinto
pena 


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agora
noto cada vez mais a fadiga
e dela falo cada vez menos
quero morrer lago
antes de morrer logo

estou com medo de tudo 


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último poema para o outro

eu sentava num bar de esquina
onde o seu gesto e a sua palavra
eram imperativos
o mimetismo
a imitação
passavam por lealdade
tornei-me mestre na arte
de me confundir com a paisagem
com as mesas ou com as garrafas
(com o tempo
invadiu o meu desejo)
a boca deixa escapar
durante uma conversa
a primeira pessoa do plural
e nos dedos despertou
a sensibilidade
do espinho da fala
espalhei que amava
deixei também de olhar
por cima do seu ombro
se ouvia passos
atrás de mim
já não me sobressalto
antes sentia um calafrio
nas omoplatas
mas hoje sei que nas minhas costas
endureceram
e meu coração frio
acabou com as ondas turquesa
lembro claramente
quando vinha a conta
trocos
cada vez um que pagava
se quiser uma moeda
de prata com que
de vez em quando
a generosa eternidade
inunda o efémero
e acabou
em parte por superstição
crença infundada
de rapaz imberbe e mudo
em parte
talvez
porque só ele
o efémero
é capaz de sentir
de ser feliz
eu efêmero
agora
estéril




eu amava o outro
o outro que fazia sentido
o outro que antes
sabia ouvir e virou
os ouvidos
eu amava o outro
talvez por mim mesmo
por ser parecido
com o outro
comigo
eu amava o outro
que fazia sentido
que entendia o mundo
com olhos sensíveis
eu amava o outro
na delicadeza
antes de ser esse
ser estranhado
eu amava o outro
que fazia sentido
não amo mais nada
só amo o que tenho
esse amor
da lembrança do outro
esvaziada 


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in des_memorian


no meu sonho
meu pai vivia
e eu fazia sua barba
em silêncio
e sua voz
já não tão alta
comentava do clima
de assuntos nunca
antes mesmo
sem necessidade
anunciados
reclamava de não
conseguir
fazer mais a mesma
barba
sozinho
e do calor dentro de casa
(a casa tinha que conter o ser
que não se contava)
um espelho de três partes
refletindo
o chuveiro
a torneira aberta
água aos jorros
os pelos brancos indo pro ralo
os pés inchados
não sei onde deixei os cigarros
- tudo isto claramente
num tom prático
e logo a seguir chama
"Lúcia, Lúcia"
em estouros e estalos
como uma porta
a bater contra a parede
prestes a saltar das bordas
e vinha a mãe
minha mãe que raramente
lhe tinha afetos
no entanto
atendeu o chamado
ele pergunta sobre os cigarros
ou do cinzeiro
como garantia
antes estes fiapos de voz
esta fala
este arremedo de pessoa
consumida
senti sua humanidade
pela primeira vez
desde que você se foi
em cinzas 


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os poemas cercam-me em silêncio
poemas estrangeiros
palavras
poemas famintos poemas nus
poemas essenciais poemas surdos
poemas sensíveis poemas sujos
poemas anônimos só poemas cegos
poemas que vivem em pensamentos
e nunca saem
falam nos pensamentos
nascem nos pensamentos
sob os abismos indecisos
o medo do poema-erro
universal
poemas que acordam por dentro
e vão
trabalhar toda manhã
misturam coragem
arrastam palavras
constroem outros poemas
erguem
um monumento
à sua própria solidão
e desaparecem
partem do mesmo jeito que nós
esquecemos dos outros
passo a passo desfilam devagar
diante das palavras
e
arrastando modos e tempos
escalam a sua
própria
palavra 


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iceberg

eu sofro
derreto
e faço
um
poema 


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rever pela última vez
uma paisagem
passagem remota do tempo
por trás de janelas
em que se debruçam
rostos
nossos semelhantes
e algumas saudades
todos os poetas
deveriam
rever a paisagem
por trás do túmulo de cada
lembrança
e a chuva que cai devagar
quando o amor nos desafia
rever
a enxurrada de memórias
deslizando
sobre as calçadas
e confundindo tudo
desmanchando as palavras
remontando poemas
rever
sobre a palavra suja
a cruz que estende seus derradeiros braços
enrijecidos
amargurados
pregos de aço
crucificados
numa noite de lua cheia
rever
a sombra alongada
dos prédios
e dos postes
muito altos
registradas
em
fotografias
digitalizadas
numa noite de lua cheia
rever
a água barrenta
indo pros esgotos
desfiando como calças
muito gastas
depois
bem muito cedo
ver mais uma vez a última
estrela branca
por onde surgirão
caminhantes
caminhos
e últimas
esperas
e finalmente rever
o sol que se levanta por
entre as costas
desconhecidas
dos passantes 


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uma vida
em cujos registros
as partidas seriam
mais proeminentes
do que chegadas
não terei tempo
de escrever
meu último grande
poema
meu legado
são memórias esparsas
jogadas
no ar como os cantos dobrados
de uma página de livro
marcadores
e números
de
desencontros
páginas e páginas
abertas a esmo
os amanhãs
entram pela casa adentro
sempre com a mesma
pontualidade
crítica
cínica
cruel
acordo sempre
com pedaços de frases
ditas em sonho
levando a parte alguma
como reticências
intermitentes
sem trazer consolo
ou alegria
apenas
tento justificar
minha
nudez
caindo na dependência de uma realidade
que me contém
inatingível
nessas horas
escapam
lágrimas
que os dramaturgos
adorariam
utilizar
em pregar
peças
e fazer rir
aos olhos de outros
a grande
tristeza
enfeitada
dentro
de cada um 


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anos
horas
agoras
povos
fogem no tempo
como água corrente
a natureza é espelho móvel
através das redes
nós
os peixes-humanos
visões da terra
sem
despedidas
fisgados todos
esperneamos
no tempo-ar
que nos
resta 

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hoje de novo sigo a vida
para a vida
a vinda
a venda
nos olhos
me guio pelas vistas
da poesia
contra a maré da vida
vazia 

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cantar de lábios
cantar de olhos
cantar de cílios
esperando o cantar de tal face
gritar as pedras
pelos bastidores
na soma dos cantares
trespassando
o corpo
querendo
viver
um outro rosto
qualquer
melhor 


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tempos-juntos
mundos separados
solitário
na margem do lago
onde as pedras são um tempo
rígido
onde o tempo é de pedra
e a espera é água
do outro lado da margem
tempos-juntos
água espera
áspera
na margem do lago
um milagre
puro 


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enfrento
na falta de feras
jaulas de aço
prisões piores
essas abertas
escavei meu nome
e o tempo sempre me fala
para cumprir o indesejado
em colunas
e paredes nuas de concreto
vivo à beira-morte
tiro azes da manga num oásis
(raridade)
jantei com certas maldades
não bem-vindas
nem minhas
nu
comendo frutas
do alto de uma montanha
faz muito tempo
olhei meio mundo
a terra
quase inteira
quase me afoguei duas vezes
em êxtase
e sozinho
por vezes deixei que facas
me perfurassem
produzindo mágoas
abandonei a cidade em que nasci e que nem me viu crescer
os que me esqueceram dariam a população de uma cidade inteira
percorri ruas que viram pessoas berrando do alto de suas janelas
usei roupas que
hoje
por toda parte
estão voltando à moda
plantei poemas
cobri de pixe o esquecimento
para desmantelar maldades
alheias
nesta vida só não bebi água seca
concedi a meus pulmões
todos os sons
até o urro
hoje só solto gemidos
e lágrimas estranhas
que escapam de um olho só
já fiz cinquenta e um anos
que posso dizer da vida?
que é longa e detesta a transparência
odeio as coisas escondidas
olhos me entristecem
mas excessos de dramas me enjoam
no entanto
até que me enfiem terra
pela goela abaixo
tudo o que posso fazer é
fazer o possível
para sair dela
agradecido
fazer
porque até a mágoa tem limite
como tudo
o olhar esbarra na vidraça
como a luz azul da lâmpada
engulo a seco
agito as chaves
como meu pai fazia
quando chegava em casa
e inspirava
medo
não respeito
fazia minha
solidão de homem ao quadrado
ele franzia o cenho ao farejar as escadas
e o vazio se estendia
numa perspectiva infinita
e afinal o que é o espaço
senão
a ausência de um corpo a cada ponto dado?
e se olho fixo para o globo
é a minha nuca que vejo
e as cidades cujos catálogos telefônicos
quase nem existem mais
já não te incluem
busque na internet
só o futuro
porque o passado
e o presente
são a todo momento
alterados
e os rostos amarelecem
de falsa felicidade
a verdade não está numa imagem
nenhum engano
existe
na realidade
e a amplidão
fica na verdade
no azul
do céu
ensolarado
ofuscante
pelas manhãs 


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aguardei na coluna
do prédio
o fim da chuva fria
como dom de Deus
e era estranha
minha sensação
pois algum dia
fui feliz
fui prisioneiro
de anjos
combatia monstros horríveis
sem descanso
só procurando
sorrateiro
uma pessoa-rápido-descendo
escadas
junto comigo
e tudo
se foi
sumiu
olho janela afora:
acima
eu o escrevi
contudo
sem perguntas
agora
quase setembro
um som distante invade
meu ouvido
é um outro
frutas pensas nos galhos
cheias de seiva nas ramagens densas
parecem signos de novidade
e o ouvido admite
como gente que fica esperando
um som assíduo
de chuva que
na mente
sem chegar a
música ainda
é mais do que ruído
é alguém novo
chegando 


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"ao partir,
disseram-me: voltarás sempre.
parecia um consolo.
era uma condenação.
odeio o sempre.
nos lugares
da vida carecidos,
o sempre é o pior dos nuncas."

A Partida - Mia Couto, "Vagas e Lumes"
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