quinta-feira, 11 de agosto de 2016

dos desavisados...

.
"Aquilo que eu ouso
Não é o que quero
Eu quero o repouso
Do que não espero.
Não quero o que tenho
Pelo que custou
Não sei de onde venho
Sei para onde vou.
Homem, sou a fera
Poeta, sou um louco
Amante, sou pai.
Vida, quem me dera...
Amor, dura pouco...
Poesia, ai!..."

Anfiguri - Vinicius de Moraes
.
despair





























vocês
leitores
de nós
poetas
vocês que nos adivinhem
porque
a palavra ao mesmo tempo
que atrai
trai
os desavisados
sem
emoção
.............................................................

tenho acordado em lágrimas
em um olho só
a pele descamando
como se tivesse perdido alguém que nunca tive

venho a me transbordar
porque nada existe

porisso há tanto

- ser triste

e porque
ninguém
chega a ter dois olhos
nessas andanças

mais espesso e vermelho
cor que gosto
verdadeiro

queria menos que os dois pés
mais que o nome
os olhos ilhados
de volta
repostos

então a resposta
fica entrelaçada
entre as mãos
e o infinito escorrendo delas
se de um lado peço abrigo
de outro arranjo expectativas
tem horas
que me deixo
lanço
largo
de saco cheio

em cada um dos olhos
claridade e escuridão
o óbvio ofuscam
e o que ninguém pode ver
escondo essa

abissal névoa
navalha
.............................................................


meu menino interno
cansado de cinzento
quer ser eterno
assopro nos olhos
ambos
para não doer

ternura encontradas
em leituras
e sentir os mais simples
um canto de esperança
dormir

meu menino louco
não consegue descansar
de ver

basta me olhar umas noites
vendo um pouco melhor
inteiro
até meu cheiro
lidar com minha voz
minha voz de estações em ruínas
há em mim
um chamariz
de antigamentes

e o menino
se doendo
roendo
do meu corpo ser só

duna
areia fina

então
o
menino
canta
uma
poesia
.............................................................


acontece
em meus olhos
uma beleza tão triste
tamanho o estio
até os poemas estão
assim
feito meu peito

áridos
ardidos

esse projétil
que me alcançou
os olhos

criou um véu de sombra à razão
sob os dedos
restou o toque
estético
poético
pornográfico

uma lança me rasga o entre
olhos
ardentes
toda
manhã
.............................................................


antimatéria do amor

para Tom Zé

meto mesmo
meto a língua em tudo
tudo quanto
é fato
difícil
ou buraco ausente
porque fazer amor
de verdade
é fazer
indecente
.............................................................


para voltar a amar
vou colar rascunhos
rabiscos
no teto
chão e acabar
com as paredes em branco
em atropelos
compor ritmos com o corpo
me embriagar da palavra
morder o poema a seco
a cru
em longos goles de afogamento
morte instantânea
bela e breve
urrar pelos cantos
dentro um gozo literário
e fazer um museu de tudo
que é só de poesia que posso
me refazer
e amar
inteiro
.............................................................


para o amor
verdadeiro
são necessárias

rosas
de uma cor
irritante
.............................................................


rastro

a poesia diz que a gente
não vai mais parar
de olhar outras
pessoas
e inspirar
esses mundos aí
nunca mais
nunca mais
e eu não li mais nada
ou nem viouvi
quieto
no meu canto
deixei de me derramar
também
hoje
algumas risadas
como antigamente
meio de leve
elas acontecem
tímidas
entrevadas
sem comemorações

- tem dias que
me dá vontade de chorar

.............................................................


"A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho. 
Só sei que é meu, impermutável.

De que se trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado –
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.

Isto é justo – pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz."

A vida na hora

SZYMBORSKA, Wislawa. In:_____. "Um grande número".
.............................................................

fuso

de onde vim
desisti
belezas
destroços
soam intensamente
doem até
tudo existe
dorme até
apagado
que doam as montanhas em desvio
gozam a doer profundamente
verdade
no rasgar das manhãs
até que me lembre
amava

o
por
do
sol
.............................................................

caminho

o poema voa de dentro da ave
eu
gargalhando
dolorosamente
para algum ninho
tranquilo

lentos
dentes
dilacera
escreve
e voa
de dentro
para fora

o poema
é uma ave
teimosa
temerosa de gaiolas
e jaulas
e correntes
o poema
voa
por dentro
da
gente
.............................................................


"Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. 
Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, 
mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, 
que chegará setembro — e também certa não-fé, 
para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. 
É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, 
e só lembrar disso no momento de, por exemplo, 
assinar um cheque e precisar da data. 
Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto 
e ir em frente. 
Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente."

Caio Fernando Abreu
.............................................................


é preciso um quase
quase agradecer sempre
todas as manhãs
o mau humor
o sabor amargo do bolo
das flores
murchas
é preciso não esquecer nunca
todas as manhãs
o desamor
e o amor que resta
ainda sob um céu de tempestades
internas
sempre e nunca é muito tempo
e ainda
falta
o rumor

tudo é ruína
.............................................................


















meus
dias
todos
escrevo
com
sangue
enquanto
(des) espero
.............................................................


para a noite
e todos
os pensamentos
com desvio
de
razão

.............................................................


"não me pergunte quem sou
e não me diga
para permanecer o mesmo."

Michel Foucault

.............................................................


fico pouco
onde me mandam
pensar muito
sou um etéreo
pulsar de ritmos
se eu penso
e não sinto
eu
sigo

.............................................................


meus poemas caminham comigo
como um vento forte
nas ruas
e avenidas
dessa cidade
meus poemas pousaram
como mãos sobre vários
ombros
e foram parte do tempo respirados
onde o ar de poucos
o
inspiraram

.............................................................


"paira sobre mim a presença
de uma mão partida
e sempre uma ave parte:
nunca sei para onde."

- Maria Manuela Margarido, poema "XVI". no livro "Alto como o silêncio"
.............................................................


as palavras nada dizem
dos náufragos
pétalas apenas
pétalas não visíveis
sobre as marés
infinitas pétalas
onde vivem plantas
troncos
e as gentes
vivem objetos
escadas
casas
edifícios
em tamanho maior que tudo
gentes em permanente parto
de existências
em exatas
metamorfoses

.............................................................


pessoas me atravessam
carregadas de cidades
e distâncias

.............................................................


a viva hora dos teus dedos
nos ponteiros dos dias
e nos relógios postos
em ilhas
isolando o tempo
dos náufragos
aguardando
as marés
um dia
de
cada
vez

.............................................................


a fome é pública
a fome se publica
mas não matam
a fome
.............................................................


o amor é muito
tudo
tudo
tudo
feito fogo
muita coisa queimando
mas só uma combustão
em dois únicos lugares
que roubado
a gente só tem vultos
só tem antes
entre verbo e mundo
numa história trapaceada
dois corpos jazem
murchas eternidades
de


.............................................................


foi o começo do tempo
quando o céu ergueu-se do lodo
pela primeira vez
foi o começo do sofrimento
quando um anjo falou
e de novo se calou
e recomeçou toda
a miséria
de novo
.............................................................


a noite surge com bocas
grandes
quando a tarde para de falar
o pão e a cama começam e terminam
e o desamor
obscurece o pensamento
mas outras mais tardes
dividem a noite
novo sono arrancado,
suspensão desperta
entre sonho e sonho
e calmantes
nunca soubemos quantos
o sol se atrasa por horas
de logo e logo
então chega a febre veloz chamada dia
mas a febre lenta se chama tarde
e fica agarrada
ao pensamento
até a tortura
seguinte
que nunca
desiste
de
ser incômoda
como
a peste
da
insônia
.............................................................


inde_sente

os minutos piscam e despistam
fechados e abertos vão e vêm
os ponteiros
um por um
nenhum por nenhum
o que sabemos
o que não sabemos
dissabores
bárbaros
felicidades
mínimas
em conta-gotas
tirando ácido prazer
sarcástico
de uma existência
que só pretende
ser
plena
e não o deixam
por incompetência
pública
e solitária
num quarto
mínimo
mofado
alérgico
até
na própria
vida
.............................................................


e olhando para baixo
num degrau da memória
repeti:
eu nunca fui disso

.............................................................


a tv e o jornal
reportam pessoas
como sempre
o duplo de papel da carnalidade
do sensacionalismo vazio
que mantém a vida na moda
e queima o certo original
muitos acreditam com fé
esfregando a lâmpada fictícia
esperando um desejo
e logo surgem os falsos gênios
para se fofocar
da ampla página
ou pela tela
pela matéria
sabemos sobre nós
silenciados
por nossas fotos impressas
imagens suspensas
numa parede frágil
e a coisa toda circula talvez além
dos limites privados do boato carnal
e a propaganda
é a de um retrato relativo
irreal
que serve a um modelo calado
desejando fama
um bom lugar na galeria remota
que garante à criatura
uma imortalidade breve
e empoeirada
um fantástico memorando
num arquivo perdido
provando
que
o tempo
é mais curto
que qualquer
memória

.............................................................


pensar é o jeito mais pobre de viajar
trilhas na cabeça
sonhos na cama
tranquilizantes
e sono
viver preso
num corpo
é o jeito mais triste de viver
trancado em si e só
em carne e ossos
tudo com tamanha fragilidade
que quando se ouve
falar da morte alheia
é que se sabe
se dá conta de tanta
finitude
tirem-me da cabeça
para não pensar
em tudo isso
tirem-me do corpo
para não ter que passar
por tudo isso
acordem-me da cama
em vez de homem
vagabundo e torto

.............................................................


corrosivo

estar vivo é estar curioso
quando perder interesse pelas coisas
e não estiver mais atento
ávido
por fatos
acabo esta busca
restante
a morte é a condição
do supremo tédio
vou deixar que seja cremado
e aí
por saber da paz que a morte traz
seria bom seguir
convencendo o destino
a ser mais generoso
estender
também
o privilégio do tédio
a todos vocês
que não me deixaram
em
paz
.............................................................


sempre procuramos a verdade
para quê?
ela tem medo de ser pega
livros com verdades são gaiolas
a verdade não é um pássaro
para ciscar palavras com paciência
e morrer depois de se fartar
a verdade não gostaria de viver
na cabeça
ou na garganta
ou no coração de alguém
e sempre tem gente
que tenta achá-la ali
em vão
a verdade não é fruto
pra ser arrancada de uma árvore
nem é ramo de paciência
nem é flor que se cheire
a verdade não é nenhuma sereia
a verdade certamente
se afogaria numa fonte
deixe a terra em paz
sem essas verdades falsas
a verdade não deixa pegadas
não a escute
até o silencio se pôr com o dia
a verdade não faz ruídos
conta com o silêncio
e não segue a luz
que cegue no sol
que segue a noite
a verdade dança além da luz
e do sol
e da noite.
a verdade não pode ser vista
nem visita se recomenda
a verdade
deixe a curiosidade ficar em casa
ela pode se perder
(a verdade freqüenta
lugares estranhos )
se muito nova
o segredo se cansa
um dia vira imprudência
deixe a verdade em paz
a verdade não pode ser pega
acho que ela não vive pouco
bem pouco
pois sempre morre cedo
então
.............................................................



"Para trás!

Sou pedra.
Você tem de rasgar sua carne para escavar meu peito.

Sou tempestade.
Ninguém relaxa comigo.

Sou montanha.
Moureje até o topo, e vire um solitário.

Sou gelo.
Você tem que congelar para que eu derreta.

Sou mar.
Não vou devolver você.

Se isto o assusta,
Para trás! Para trás!

Ainda que, se você for meu amigo,
Não lhe serei nada disso."

Para quase um amigo - Laura Riding
.............................................................


azia

talvez uma manhã
andando num ar de vidro
árido
de costas
verei cumprir um milagre
o nada às minhas costas
o vazio atrás
de mim
com um terror de embriagado
eu sem respirar
aliviado

.............................................................


restou assim esta casca
minha real substância
o fogo que não se amortece
para mim chamou-se
observando alguns outros
ignorância
.............................................................


que as pessoas hoje
não me peçam a palavra
que acerte cada lado
com meu ânimo disforme
feito com letras de fogo
o aclare e incendeie
como esse incômodo
no meu estômago
de pessoas que não sabem
e se contradizem
de fato
e me sinto
perdido
em meio de poeirenta
estrada
sem entender
mais
nada
.............................................................


falsete

os dias
não prometem o desejado
o possível
ou o impossível
mas também não silencia
e paradoxalmente
indica um silêncio:


"não nos peças a fórmula
que te possa abrir mundos
e sim alguma sílaba torcida
seca como um ramo
hoje apenas podemos dizer-te
o que não somos,
o que não queremos"
.............................................................


eu disse a mim mesmo
que conseguiria
parar os relógios

mas precisaria imolar
algum cordeiro
.............................................................


canto cego
e fica a vida assim
suspensa
é como se um rio parasse
em redor é tudo nada
mas quando cessa meu canto
o silêncio é todo água
estagnada

.............................................................


qual tristeza se levantou
estes dias
contra mim?
que entrelaça
de cristalino eco
do coração
as estrelas
sujas?

qual jorro de nascente
de coração em festa
se virou em fera?

eu sou
um charco de escuridão

agora mordo
com medo
de outro susto
do futuro

agora estou
embriagado
de
puro
desespero
.............................................................


quantos anos
são necessários
para se ficar velho?
‪#‎beatbugs

.............................................................


o amor mais limpo
não ergue a voz
no rumor dos corpos

.............................................................





























.............................................................

Nenhum comentário: